domingo, 10 de setembro de 2023

O poço


Os festejos do dia da independência naqueles tempos de militares na presidência do país se comemoravam com desfiles cívicos, pois não tínhamos unidades do exército na cidade. A banda da escola se encarregava de tocar as marchas que davam o tom no andar dos pelotões sobre o calçamento com paralepípedos. Formados pelos estudantes das escolas do município, os pelotões seguiam o rtmo da banda, quando parava os acordeas da marcha, a banda se posicionava em retirada e seguia tocando músicas do repertório clássico brasileiro. Este era de fato o momento festivo, balançavamos os corpo e mexiamos as pernas em movimentos de dança para celebrar  A cidade parecia tão populosa, enchia de gente por todos os lados, as pessoas tomavam o dia com solenidade, com uma boa dose de devoção à pátria, muito bem construída pelo o que se aprendia principalmente na escola.

Durante semanas preparávamos nossa participação na famosa hora cívica. Tarefa que incluía, antes de iniciar a aula, ensaiar o hino nacional e saber hastear bem a bandeira. No dia destinado à nossa turma apresentávamos cenas da história brasileira, narradas na forma de jogral, enaltecendo certas figuras que nos diziam ser heróis do nosso país. A praça em todo seu entorno estava enfeitada com bandeirinhas, agitadas com entusiasmo pelas pessoas. E sempre, quase sempre, soprava aquele vento norte morno, já anunciando a primavera, enquanto uma autoridade fazia um discurso interminável. A tarde findava e, exaustos, só desejávamos uma bebida gelada, um picolé ou um sorvete.

Em um desses desfiles chegamos ao nosso limite de espera e cansaço, nossa colega Jeane caiu feito fruta madura junto aos meus pés e eu pensava: que aniversário que ela está tendo. O calor insuportável das primeiras horas da tarde provocou desmaios na gurizada, aguardávamos enfileirados sob o bafo que levantava das pedras do calçamento. A gente contava os minutos para o final, na expectativa da ouvir a ordem de "desmanchar pelotão" a ser dada pelo professor de educação física. Ele organizava os pelotões, era mais um soldado entre os professores nos comandando e nos vigiando. Cada autoridade, do padre ao prefeito, queria discursar e o palanque ficava abarrotado de figuras ilustres. Nosso alívio eram as piadinhas dos guris, as risadas das gurias, as provocações e os olhares trocados entre os colegas nas diferentes filas que formavam aqueles pelotões: um por ano escolar.  

Lili mal se livrava daquele momento torturante e corria para se aglomerar junto às colegas. A praça estava florida e movimentada, logo nos acomodávamos em um banco para repassar os acontecimentos do dia, algo inesperado sempre acontecia, algo que havia saído do controle dos professores. De tudo que se contava, se gargalhava. Afinal, dever cumprido, o resto do dia estava por nossa conta.

Depois da janta, dependendo do humor da minha mãe, ou se ela decidia dar uma passada na casa da tia Maria, Lili podia encontrar as amigas na praça outra vez. Nosso ponto de encontro era o poço, localizado entre a Igreja e o Coreto. O poço naquela época servia como referência, lugar de encontros de todo tipo. Muitas vezes a gente chegava e ele já estava ocupado por um casal de namorados ou por alguma família reunida de cochicho com algum parente, com certeza o poço era um local bem disputado. Confesso que não o via como um bom lugar para namorar, pois ficava exatamente no caminho que as carolas percorriam para achegar à igreja. E se houvesse anoitecido, no retorno delas da igreja, piorava muito a situação dos apreciadores românticos do poço, pois, coincidência ou não, as mais conhecidas tinham o mau hábito de também comentar maliciosamente a vida alheia. 

No círculo ladrilhado com pedras rosadas e brancas que contornava o coreto haviam bancos de concreto. No verão ficavam lotados, as pessoas costumavam ir à praça tomar a fresca da noite. As luminárias brancas enfeitavam o canteiro central e deixavam o coreto mais majestoso. Aquela luz difusa e amarelada também incidia sobre o poço, favorecendo a intimidade entre os namorados. A antiga construção feita para abastecer o povoado de água não funcionava mais para tal fim. Mas o poço seguia no caminho para igreja, de frente para o coreto; tornou-se há muito tempo o pano de fundo para fotografias de famílias, amigos, namorados. Ele também não perdeu sua magia como ponto de referência, uma vez que outra Lili imaginava um encontro no poço, com um namorado que ainda não tinha.             


       

Carapé

O senso de localização de quem vive em uma cidade pequena segue indicações personalizadas, as zonas urbanas não são identificadas pelos pont...