domingo, 17 de dezembro de 2023

Carapé

O senso de localização de quem vive em uma cidade pequena segue indicações personalizadas, as zonas urbanas não são identificadas pelos pontos cardeais: norte, sul, leste e oeste, tal costuma ser na cidade grande. Sabe-se o lado por onde o sol se levanta e por onde ele se põe e isso basta. A gente toma o rumo conforme o que está determinado como referência, bem informada pela boca do povo. Todo mundo sabe dizer por onde se vai, uso um gesto, um detalhe, que são quase sempre reconhecidos pelos moradores, pode ser de um lugar, uma morada, uma pessoa, um acidente geográfico. 

Para sair da cidade e entrar nas larguezas do município, seguem-se outras indicações, pois as distâncias são curtas entre o que é cidade e o que já é campo, só perceptíveis pela mudança na paisagem. A periferia tem jeito rural, há vastos terrenos baldios entre as casas, que vão se distanciando umas das outras e as moradas são, na verdade, nada mais do que pequenas chácaras. Era como eu sentia e via o mapa da minha cidade.

Na cidade da Lili, todo mundo sabia qual era a direção que um vicentense tomava quando ia para as bandas do arroio do Cuchá, lugar preferido dos guris para um bom banho no verão. Para se chegar até lá, havia dois caminhos: uma caminhada seguindo pela rua lateral da escola, passando pela famosa "zona", local da conhecida casa de prostituição da cidade, por ali, ia-se cortando os terrenos até avistar o arroio. O outro acesso, era pela rua do hospital, passado pela curva da rua, seguindo bem além da casa do tio Niquinho, carpinteiro irmão do meu avô. Por este trajeto, dava-se uma boa puxada de pernas, sobretudo, vindo do centro. Valia à pena a longa caminhada para era alcançar o paraíso daquele frescor que só as águas do Cuchá proporcionavam. Lili, do jardim da casa da vó Xiruca, suspirava ansiosamente pelo dia em que seria liberada para essa caminhada, enquanto avistava um grupo de meninos descendo a rua, mas ela estava proibida de fazer tal aventura, havia muitos mistérios inexplicáveis sobre o arroio do Cuchá. Para aqueles lados, girando à esquerda, havia uma escola Brizoleta, ao lado da propriedade de uma família Lutz. Também para aquelas bandas se chegava à localidade da Timbaúva. 

Caso a gente fosse para as bandas da cooperativa, ou se mais perto, se dizia "depois da curva do cemitério", "na esquina do bolicho do Nelson Lima"; a cada tanto, tinha-se novas referências de locais, podia ser rumo ao Agrícola ou à fazenda do Sobrado. Mais adiante por estradas arenosas encontrava-se o rio Umbú. Para o mesmo lado, tomando à direita seguia-se para o Loreto, o conhecido, singular e majestoso cerro símbolo do município. Se o caminho escolhido fosse para as bandas do Grenal, o famoso salão de baile, se estava nas proximidades da igreja Luterana e da Escola Coqueiros, já quase chegando na estrada que se saia para Santa Maria. Em linha reta seguia-se pela estradinha de chão batido até a Vila Clara, há poucos metros havia uma curva para esquerda, por onde se alcançava o distrito do  Cavajuretã.

Se girasse mais ao norte, se ia rumo a Jaguari, passando lá pela vó Cinda. Meu pai ia e vinha de charrete da nossa morada, trilhando a rota do arroio do Salso, contornando pela lateral da avenida de eucaliptos que ornamentava e dava sombra para a Cancha, onde aconteciam as carreiras de cavalos, diversão dominical. Passando por ali, se cruzava pela Vila Carapé, primeira vila organizada do município.

A vila Carapé foi a primeira que conheci. Quando minha mãe visitava a madrinha Mimosa, da esquina eu podia espiar as casas distribuídas lado a lado, todas com o mesmo desenho arquitetônico. Eram casas populares, coloridas, a cor diferente dava individualidade a cada uma. Entre elas havia uma escola, no mesmo modelo da escolinha lá para os lados da minha avó Xiruca. Em cada região, na saída do perímetro urbano, em seguida se avistada uma Brizoleta, assim eram chamadas as escolas rurais, pois foram construídas por meio de um projeto de acesso à educação na época em que o Brizola foi governador.

O nome Carapé homenageava o cacique e depois capitão mor Carapé, índio que auxiliou na organização da estância São Vicente Ferrer, que fornecia gado e cavalos para as demais estâncias jesuíticas das Missões. A primeira ocupação foi de um general paraguaio, assessorado por Carapé. Dizem que Carapé retornou depois do fim das Reduções e colaborou com o desenvolvimento da primeira aldeia. No local onde se ergueu a Vila Carapé, ao escavarem o terreno para a construção das casas, dizem que encontraram artefatos dos indígenas, os primeiros moradores do município. 

Lili apreciava o nome Carapé, parecia sonoro e único, talvez porque ao passar pelos cinamomos em frente à prefeitura, na rua Carapé, pensava que só existíamos como município porque um certo índio capitão organizou a aldeia, que virou vila e que depois virou município. Carapé significa uma pequena ave, que por estas terras se agigantou.

domingo, 10 de setembro de 2023

O poço


Os festejos do dia da independência se comemoravam com desfiles cívicos, não tínhamos unidades do exército na cidade. A banda tocava não só as marchas para puxar os pelotões, formados pelos estudantes das escolas do município, mas também alegrava a cerimônia festiva com músicas do repertório clássico brasileiro. A cidade enchia de gente por todos os lados, as pessoas tomavam o dia com solenidade e uma devoção à pátria muito bem construída pelo o que se aprendia principalmente na escola.

Durante semanas preparávamos nossa participação na famosa hora cívica. Tarefa que incluía, antes de iniciar a aula, ensaiar o hino nacional e saber hastear bem a bandeira. No dia destinado à nossa turma apresentávamos cenas da história brasileira, narradas na forma de jogral, enaltecendo certas figuras que nos diziam ser heróis do nosso país. A praça em todo seu entorno se enfeitava de bandeirinhas, agitadas com entusiasmo pelas pessoas. E sempre, quase sempre, soprava aquele vento norte morno, já anunciando a primavera, enquanto uma autoridade fazia um discurso interminável. A tarde findava e, exaustos, só desejávamos uma bebida gelada, um picolé ou um sorvete.

Em um desses desfiles chegamos ao nosso limite de espera e cansaço, nossa colega Jeane caiu feito fruta madura junto aos meu pés e eu pensava: que aniversário ela teve. O calor insuportável das primeiras horas da tarde provocou desmaios na gurizada, aguardávamos enfileirados sob o bafo que levantava das pedras do calçamento. A gente contava os minutos para o final, na expectativa da ouvir a ordem de "desmanchar pelotão" dada pelo professor de educação física. Ele organizava os pelotões, era mais um soldado entre os professores nos comandando e nos vigiando. Cada autoridade, do padre ao prefeito, queria discursar e o palanque lotava. Nosso alívio eram as piadinhas dos guris, as risadas das gurias, as provocações e os olhares trocados entre os colegas nas diferentes filas que formavam os pelotões.  

Lili mal se livrava daquele momento torturante e corria para se aglomerar junto às colegas. A praça estava florida e movimentada, logo nos acomodávamos em um banco para repassar os acontecimentos do dia, algo inesperado sempre acontecia, algo que havia saído do controle dos professores. De tudo que se contava, se gargalhava. Afinal, dever cumprido, o resto do dia estava por nossa conta.

Depois da janta, dependendo do humor da minha mãe, ou se ela decidia dar uma passada na casa da tia Maria, Lili podia encontrar as amigas na praça outra vez. Nosso ponto de encontro era o poço, localizado entre a Igreja e o Coreto. O poço naquela época servia como referência, lugar de encontros de todo tipo. Muitas vezes a gente chegava e ele já estava ocupado por um casal de namorados ou por alguma família reunida de cochicho com algum parente, com certeza o poço era um local bem disputado. Confesso que não o via como um bom lugar para namorar, pois ficava exatamente no caminho das carolas para a missa. E se houvesse anoitecido, no retorno delas da igreja, piorava muito a situação dos apreciadores românticos do poço, pois, coincidência ou não, as mais conhecidas tinham o mal hábito de também comentar maliciosamente a vida alheia. 

No círculo ladrilhado com pedras rosadas e brancas que contornava o coreto haviam bancos de concreto. No verão ficavam lotados, as pessoas costumavam ir à praça tomar a fresca da noite. As luminárias brancas enfeitavam o canteiro central e deixavam o coreto mais majestoso. Aquela luz difusa e amarelada também incidia sobre o poço, favorecendo a intimidade entre os namorados. A antiga construção feita para abastecer de água o povoado, não funcionava mais pata tal fim. Mas o poço seguia no caminho para igreja, de frente para o coreto; tornou-se há muito tempo o pano de fundo para fotografias de famílias, amigos, namorados. Ele também não perdeu sua magia como ponto de referência, uma vez que outra Lili imaginava um encontro no poço, com um namorado que ainda não tinha.             


       

domingo, 25 de junho de 2023

A banca de revistas

Buscar o pão para o café da tarde, momento sagrado de se alimentar para minha mãe, seguia sendo tarefa diária de Lili. Quatro quadras de caminhada interrompida pelas minhas paradas de observação e de conversa solta com os conhecidos. Eu era um grilo falante e um poço fundo de curiosidade pela vida, pelo mundo e pela história das pessoas. O fascínio pelas revistas me fazia perder a noção do tempo na banca na esquina da praça, agora sob comando do Candinho. 

Aquela pequena casa de madeira mudava de cor e de dono, mas mantinha sua importância para a movimentação da cidade. Chegavam os jornais, as revistas mensais e semanais, as novidades em álbuns para colecionadores e novas guloseimas do mercado. Aquela esquina da praça tinha seu lugar no coração de muitos moradores, ponto de referência para uma conversa, um negócio, ou apenas uma distração.  

Eu me deliciava com as novidades anunciadas nas capas da revistas, juntava as moedas do troco do pão por semanas até conseguir comprar uma Grande Hotel, famosa revista de fotonovelas. Elas povoavam a minha imaginação, muito mais pelo enredo do que pelo romantismo insinuado nas fotos e nos diálogos dos protagonistas.

A televisão preto e branca tornou-se um grande lazer para minha mãe, as novelas davam a ela a possibilidade de imaginar um mundo que não tinha. Deu um frescor à sua vida urbana, reavivou seu gosto pelas novelas, iniciado nos tempos das novelas de rádio, que ouvia antes de ter casa, filhos, bichos e um marido para cuidar. A televisão e as novelas eram uma trégua na vida dura que a esperava cada vez que voltava para nossa casa no campo. Já eu, havia adicionado ao hábito de ver as novelas com ela, o de ler fotonovelas.

Lili alimentava muitos sonhos através das novelas, desde quando acompanhava a vó Cinda assistindo Mulheres de Areia. Lili hipotetizava o que iria se desenrolar nos próximos capítulos, ansiava pelo horário em que se iniciava a sequência de novelas na televisão, das 18 horas às 23 horas. Aguardava tia Jane voltar da escola, tarde da noite, para ver os delírios dos personagens fantásticos de Saramandaia, tão diferentes, cheios de poderes que só a ficção possibilitava. O universo imaginado por Lili se nutria de histórias, ia ficando cada vez mais vasto, inalcansável. Nele, ela mergulhava absoluta e dava rumos para sua vida futura, decolava daquela pequena cidade para o mundo.  

Meus irmãos frequentavam a banca do Candinho para comprar figurinhas para os álbuns: de animais, de lugares desconhecidos e os de seleções e de times de futebol. E claro, semanalmente, meu pai comprava pacotes de cigarros. Quando sobrava uns trocados da compra da revista, eu me presenteava e me deliciava com um bombom beijo de moça. A banca oferecia um mundo de diversão: jornais, revistas, doces, figurinhas, cigarros. Estar no meio do meu caminho na ida à padaria, tornava aquela obrigação diária um luxo. Afinal, a banca era como uma porta de entrada para longe daquela vida pacata do interior. Lili desejava ir mais longe, seus sonhos não cabiam ali. 

Embalada pelas novelas, colava poster dos artistas na parte interna do guarda-roupa. Todos os dias eu dava uma espiada naquele painel de atores, atrizes, cantores e cantoras. Trocava um olhar e travava um papo imaginário com eles. A alma de artista de Lili se inspirava e se entusiasmava. Queria ser atriz, queria ser diretora de teatro, queria ser pintora e também poeta ou escritora. Os cadernos da escola tinham espaços reservados para extravazar minha inspiração artística: desenhos, poemas, listas de personagens, projeto de cenários. Um turbilhão de ideias me atormentavam. Comecei a dar formato aos meus ímpetos de criação, e em um caderno pequeno de capa vermelha escrevi histórias curtas, enredos inspirados nas inquietudes românticas das amigas, através delas eu escapava de uma vida monótona e de um destino que parecia sempre estar predestinado para meninas do interior.  


sábado, 27 de maio de 2023

O tempo e a vida na cidade pequena

Logo depois de passar pelo prédio do hospital acabava o calçamento de pedras da rua Antônio Gomes, começava então uma rua cascalhada, onde a poeira levantava fina e abundante. Em dias de chuva a gente precisava saber como desviar das poças de água e, ao mesmo tempo, se livrar do barro que se acumulava nas laterais da rua, poucas casas tinham calçadas, faixas de grama predominavam em frente as construções. Justo por estas bandas morava a vó Xiruca. Lili preferia ir visitá-la fazendo o caminho pela rua Cipriano Dávila, tinha a impressão de que a subida das duas últimas quadras nas proximidades do Alto da Bronze era mais suave do que indo pela sete de Setembro. Ali estava o ponto mais elevado da cidade, local conhecido pelo campo de futebol.

Lili saia pelo fundos de casa, cruzava o terreno do seu Noé. Era fácil descer pelo campinho, bastava se esquivar com cuidado das vacas de leite. A rua de baixo, diferente da sete de Setembro, era só poeira, terra fina e muito buraco. Andando por ela, a cidade tinha outro encanto: moradas com terrenos grandes, casas amplas, muitas de madeira, com jardins, hortas e pomares. Eu podia avistar minhas colegas que moravam naquelas quadras logo acima de onde eu havia cruzado: a Ceres, a Iara e a Mara. Abanava para a Ceres, a primeira que eu avistava. Algumas vezes fiz trabalhos da escola com a Mara, que morava em um chalé todo azul cor do céu, contrastando com as janelas pintadas de vermelho escuro. A casa da família era grande e o pátio caprichosamente coberto de folhagens variadas, dentro de casa se repetia o mesmo capricho do jardim, cômodos organizados e limpos. Localizada na esquina da Cipriano Dávila com a Antônio Gomes, no lado oposto do famoso campo de futebol do Alto da Bronze, a morada parecia um sítio. Antes de chegar passava pelo boteco do Mingo, pai da Iara. Uma construção de alvenaria, posicionada na linha da calçada, já desbotada das tantas pinturas recebidas, mesclas de tons de azul, verde e branco. Uma casa de fachada alta, com portas abertas recebendo, desde cedo, os borrachos de plantão.

Uma vez por semana eu dobrava aquela esquina, passava pelo minúsculo estabelecimento do João sapateiro. Seguidamente minha mãe tinha algo para eu deixar para conserto:  sacolas, sapatos, bolsas, botas do meu pai ou dos guris. Umas casas mais adiante, avistava dona Alemoa me olhando da janela, eu fazia um aceno com a cabeça, sem erguer muito os olhos. Lili ficava constrangida, pois não conseguia desviar o olhar daquele papo enorme grudado no pescoço da vizinha da vó Xiruca. Dona Alemoa tinha um bócio enorme logo abaixo do queixo. A ignorância do povo levava a comentarem que era dela fazer tanto esforço quando jovem, tinha o ofício de lavadeira, trouxas e pilhas de roupas ao longo de uma vida de sacrifícios. Coitada, aquilo era uma anomalia, com certeza sinal de algum problema de saúde. 

Eu a via como uma figura de contos de fadas: as rugas faziam sulcos no rostro, o nariz era grande e pontudo, parecia usar muitas roupas sobrepostas. Usava um lenço branco amarrado na cabeça, o que disfarçava bem seus cabelos grisalhos e desalinhados. Embora usasse sempre saias longas, no inverno colocava calças compridas por debaixo da saia para se aquecer. Ela alimentava minhas ideias na criação de personagens, pois naquelas alturas de início da adolescência, eu já me ocupava com a escrita.

Os arredores da cidade ficavam tão próximos da zona central, caminhava-se quatro a cinco quadras e se chegava à parte mais urbana. Em verdade, havia poucas ruas calçadas, o que dava um ar de vilarejo à cidade. Os terrenos baldios entre as casas iam surgindo cada vez mais à medida que a gente ia se afastando da praça. Eu gostava dessa passagem mágica, do mais urbano para o mais rural, das ruas para as estradas. Tudo o que era mais povoado e desenvolvido se concentrava no entorno da praça central. 

O desenho da praça destaca-se pelos vários acessos, pode-se ir para qualquer lado da cidade. Do centro, onde está o majestoso coreto, partem suas calçadas largas, seguidas por árvores frondosas. Eu tinha um gosto inexplicável por sentar nos bancos de pedra no círculo grande  em volta do coreto. Naqueles bancos, Lili tinha longas conversas, repletas de confidências e risadas, com as colegas da escola enquanto o sol se punha e pintava de tons dourados as colunas neoclássicas do coreto. 

A praça com suas extremosas rosadas, além das palmeiras solitárias que circundam o coreto, surgiu de uma área grande, em frente a igreja. As ruas que foram surgindo a partir  da praça, atraindo a construção de mais casas, e assim comércio também foi se estabelecendo. Antes, tudo ali era um campo aberto, onde cavalos e vacas pastavam soltos, pastoreados por indígenas guaranis. O campo deu lugar à praça central, pois a sede definitiva da igreja matriz estava pronta e havia se instalado um poço para abastecer de água a população da pequena cidade que se emancipava. Depois, a construção do coreto deu à cidade um patamar mais civilizado. A chegada de mais de cinco mil imigrantes na época aumentou consideravelmente a população, embora eles tivessem se estabelecido no campo, nas imediações da cidade, dando origem às pequenas chácaras e moradas do interior, houve uma mudança definitiva na paisagem do município, antes dominada pelos campos vastos das fazendas localizadas muito distantes da cidade.

Os antigos contavam e recontavam, nas suas conversas rotineiras, muitas histórias dos seus antepassados; discutiam fatos, recordavam detalhes e acrescentavam mais um ponto naquela rede de conversas sobre as pessoas e suas histórias. As rodas de conversa se armavam com amigos, compadres e parentes, tecendo comentários sobre como a cidade foi crescendo, recordavam causos de todo tipo: os inusitados, os vergonhosos e os divertidos. Os velhos tinham apreço por  se reunirem em pequenas rodas nas esquinas, a mais conhecida era a da praça no entorno da banca de revista ou, então, na do clube, do outro lado da rua. Nos dias de frio, os homens de pala e bombacha se aqueciam ao sol e se atualizavam sobre os últimos acontecimentos, ou puxavam da memória um enredo sem fim de uma história passada. Pouco antes do relógio bater as doze, rumavam para casa, hora do almoço. Suas esposas os aguardavam com mesa servida: tempo e vida de cidade pequena. 

   


sábado, 22 de abril de 2023

A cor da pele

Catarina, filha do seu Nelson, sempre andava pela porta do bar do pai, conversando com os hóspedes do hotel, que ficava na parte dos fundos da grande casa onde a família morava e trabalhava, atendendo no bar localizado na parte da frente. A casa ficava situada estrategicamente ao lado da rodoviária, era um entra e sai de gente no local, motoristas e passageiros em trânsito fazendo seus lanches e gente necessitada de ir ao banheiro. Em frente à praça, o casarão verde desbotado funcionava até tarde da noite. 

Naquele lugar, onde se mesclavam espaços entre o bar, a padaria e o hotel, havia o melhor sorvete da cidade, talvez por ser o único fabricado ali mesmo. Três sabores principais eram preparados pelo movimento sincronizado das pás de metal de uma máquina de fabricar sorvetes. Quando não dava tempo de tomar um sorvete, apressada para pegar o ônibus que a deixaria na parada da Divisa, em frente à fazenda, Lili comprava um picolé de creme holandês, seu preferido. Havia diversos sabores de picolé, alguns de puro suco congelado, outros cremosos, a base de leite. 

Sob aquelas tampas de metal do balcão estavam armazenados os cremes gelados dos sorvetes de morango, chocolate e baunilha, servidos fartamente em casquinhas crocantes, feitas de uma massa doce e porosa. Nada era mais saboroso para Lili do que aquele sorvete servido pela Catarina, acompanhado de um sorriso simpático e amoroso que ela nos dava como que para retribuir a preferência pelo sorvete do estabelecimento do seu pai,  e que  soava como um certo perdão pelo momento cruel da vacina que nos aplicava, pois ela trabalhava também como enfermeira no posto de saúde. Catarina tinha a cor e a doçura de um sorvete de chocolate.

Pessoas como a Catarina eram a própria resistência, trabalhavam muito, ela teve uma vida sofrida pelas mazelas de uma diabetes. Lili fazia mentalmente uma lista, relacionando a vida de certas mulheres como a de Catarina. Costumava observá-las, trabalhavam arduamente em certos circuitos familiares, outras vezes, porque sabia que em muitas ocasiões, elas passavam por invisíveis, se quer as notavam. A cor da pele as definiam, mas também definiam seu lugar naquele mundinho de uma pequena cidade do interior. 

Uma delas, Lili via todo dia. Gessi trabalhava com dona Lalá, nossa vizinha. Muito cedo da manhã e no final da tarde, de balde, vassoura e pano em mãos limpava o açougue do seu Noé. Um lugar que exigia higiene e limpeza constantes. Ela cuidava da casa, da comida e seguidamente eu podia vê-la encerrando as vacas de leite que seu Noé criava no campinho nos fundos de casa. Gessi amargurava a vida na bebida, dizem. Criou outra fortaleza, que era a Nádia, nossa colega do sexto ano. Uma potência de força física e raiva do mundo, que davam a ela uma resistência inabalável.

Ninguém se comparava em bravura à Neda. O capricho em pessoa, com certeza, razão de ser da sua profissão, lavadeira de roupas finas. Dedicava-se a alvejar toalhas de mesa, conjuntos de lençóis, guardanapos bordados e tantas outras peças de enxoval de muitas senhoras. A risada era solta e gargalhava nas alturas, no entanto a fúria se instalava naquele corpo como um furacão se acaso fosse discriminada ou ofendida. Senti a desconfiança da Neda no dia em que ousei, como pirralha metida que eu era, dizer a ela que precisava cuidar bem  do meu lençol bordado, feito com todo carinho pela minha mãe, parte do que eu havia levado comigo quando fui morar na cidade. Passei um bom tempo sentindo um grande mal estar pela ousadia de ter questionado o capricho da Neda.

Guiomar desfilava elegância com suas saias de cós alto e camisas bem ajustadas ao corpo bem desenhado. Ela deixava no ar a beleza das suas curvas e o sorriso solto com que saudava a todos. Ria com facilidade, era espirituosa e dava impressão de que nada a abalava. Casada com Tunico, o guarda e jardineiro da praça, impressionavam ambos pela simpatia. Dançavam lindamente nos bailes pelos clubes da cidade. 

A cor da pele marcava a força e a beleza dessas mulheres que passavam por mim, que cruzavam por mim. Lili levou tempo para compreender o que custava a elas se fazerem presentes, defendendo a pele da dor, da desconfiança, da humilhação, da discriminação. Eu via beleza e via coragem, mas não podia sentir por elas, não tinha a mesma cor da sua pele.

domingo, 2 de abril de 2023

Um ano de findar etapas

Nas horas em que se distraía, vagando por pensamentos absortos, sem endereço certo, Lili costumava fixar seu olhar em algo inusitado. Observava a entrada e saída das abelhas sem ferrão que viviam em um pequeno buraco no tronco do cinamomo, aquele do banco de ferro onde o Vergilino sentava para tomar chimarrão, localizado bem em frente à janela do quarto dos arreios. As abelhas iam e vinham, talvez seduzidas pelo perfume das flores da primavera, localizada logo ao lado da cerca da lateral da casa, de onde se via o campo da ladeira. Eram inofensivas, então Lili podia se aproximar e analisar seu vai e vem para entrar no pequeno orifício da sua colmeia, disfarçado entre as cascas do tronco da árvore.

Os dias andavam tristes na fazenda, até insuportáveis. A casa estava silenciosa,  havia pouca gente da família, alguns homens no galpão e, claro, o Vergilino que não nos deixava sozinhas. Desde que a vó Cinda faleceu, eu costumava acompanhar minhas tias cada vez que elas vinham passar alguns dias na casa da fazenda. A Maria também seguia por aqui, mas como eu, parecia sem rumo, sem ter quem nos guiasse. A tristeza havia piorado muito com a perda inesperada do tio Ruco. Eu fiquei diminuída, meus grandes afetos partiram cedo demais. Cortaram-se laços de modo muito abrupto na vida de Lili e isso doía imensamente dentro dela.  

Naquele início de março começávamos nossa jornada para finalizar o ensino fundamental e Lili vivia grandes expectativas. Mas o acidente do tio Ruco nos pegou de surpresa, minha mãe chorava pelos cantos sem esperança. Eu só tinha o olhar perdido, sentava debaixo de um árvore na praça antes de voltar para casa, me dava uns minutos de silêncio, era minha forma de rezar, falava com Deus, porque tio Ruco importava demais na minha vida. Mas ele não resistiu, e o ano começava assim, muito dolorido.

A vida seguia seu curso, era ano de formatura, mais uma etapa se encerraria na nossa vida escolar. Aos poucos a rotina da escola foi me recuperando da tristeza. A novidade da escola neste ano era a chegada de alunos de Jaguari para cursar o segundo grau. Vinham de ônibus e chamavam a atenção. As meninas se alvoroçaram com os rapazes bonitos e mais maduros e a paquera estava liberada, embora fosse uma ilusão, pois não passávamos de umas pirralhas para os guris jaguarienses. 

O colégio se encheu de gente, à tarde era um agito nos corredores e nos pátios. O bar do Faete na esquina era uma atração. Sentadas nos degraus da entrada do colégio, a gente via a Catarina pular uma janela do prédio da esquina, e a fofoca rolava solta entre as meninas. A suspeita é de aquela era a janela do quarto do Lafayete, o dono do bar. Catarina era filha do sapateiro, nossos vizinhos que moravam de outro lado da rua, em frente a nossa casa. Tinha fama de espevitada e danada, e a alegria dela nos fazia bem.

Findada a jornada diária escolar, cruzávamos a praça para uma conversa nas escadarias do coreto ou rumávamos ao clube para uma partida de ping pong. Ali se reuniam os "feras" na arte de jogar ping pong, o Ciro, o Titão, o Vito. Na maioria das vezes, as gurias se reservavam ao papel de observadoras, mas a gente também gostava de jogar partidas entre nós. Invariavelmente eu levava uma "capinada" da minha mãe porque chegava bem depois da aula em casa, pouco antes do horário sagrado da janta. Lili ensaiava ares de uma liberdade em que se auto vigiava, o que dava a ela a sensação de que disfrutar de certas alegrias, aliviava sobremaneira as perdas recentes, que iam se tornando uma saudade imensa, mas gratificante por ter tido aquelas pessoas inigualáveis na sua vida. E assim seria, um ano de findar etapas.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

O povo e o interior

A primeira vez que Lili ouviu a palavra povo foi quando vô Joãozinho se referiu à cidade ao comentar sobre as compras de produtos que necessitavam em casa e a chácara não fornecia para a família, pois o auto sustento do qual viviam praticamente evitava idas seguidas à área urbana, tudo o que a família consumia era produzido nas terras no entorno da casa. O que ele mais aguardava das compras vindas da cidade eram a erva, para fazer o mate de todos os dias, e o fumo que ele desfiava com a ponta dos dedos até que virasse um punhado de fios muito finos. O passo seguinte era colocar o fumo desfiado sobre a palha já cortada e enrolar o seu palheiro. Ele fumava enquanto ficava absorto em pensamentos. Anos depois, pelos reveses da vida e do destino, ele se mudou para o povo. 

A cidade havia surgido de um pequeno aldeamento. Tal como Lili aprendeu na escola, na praça central iniciou-se um povoamento com gentios vindos das Reduções Jesuíticas dos Sete Povos das Missões. A velha estância de gado dos jesuítas espanhóis nada mais era do que um agrupamento de índios guaranis que ali cumpriam com o papel de cuidar do gado e dos cavalos. Depois da destruição das Reduções, e findadas as batalhas entre Espanha e Portugal, as antigas terras da estância começaram a receber gado de militares à serviço de autoridades portuguesas. Também vieram portugueses que requeriam suas sesmarias de terras recebidas pelos serviços ao império no controle da fronteira. Muitos outros chegaram nos anos seguintes, exploradores e criadores de gado que viam naquela terra oportunidades para montar seus negócios como o da retirada de madeira no chamado rincão de São Xavier e outros que se dedicaram à pecuária nos bons campos nativos contornados pelo rio Ibicuí e o Jaguari. 

Nosso povoado tem ainda sua origem guarani. quando foram os índios que primeiro se instalaram nas terras da antiga estância. Se realocaram nelas depois que definitivamente a estância de São Vicente saiu do domínio espanhol e foi dando origem, sob o império português, à Vila São José, liderados pelo valente chefe Carapé. Mais tarde, as famílias dos sesmeiros se apossaram de suas terras, alguns aventureiros chegaram para iniciar seus negócios. Aportou na vila, o padre espanhol Boaventura Garcia para assumir como pároco aa igreja matriz São Vicente Ferrer. Contam que antes dessa igreja, duas outras haviam sido erguidas durante o período da Estância Jesuítica em Cavajuretã e Timbaúva  

O povo, nasceu como vila São José e foi crescendo, ergueu-se a primeira igreja e se construíram as primeiras casas. Dizem que a população triplicou com a chegada dos imigrantes, como meus bisavós, pais do vô Joaozinho, para ocupar as terras antes vigiadas pela guarda nacional, as terras do rei. Minha mãe comentava sobre o campo reiuno, ela apontava o lugar onde o gado, sem marca e identificação, formava o rebanho do império, em seguida que passávamos de charrete pela velha estrada intermunicipal, depois da ponte do Salsinho. Tudo o que mais encantava Lili era ver aquele campo todo amarelo, coberto por uma grande colcha bordada com flores de maria mole. 

A vila, em 1876, se transformou em município, e seguia sendo o povo para quem vivia nos fundos de campo, em rincões perdidos e em moradias espalhadas pelo interior. Para qualquer um que vivia em propriedades rurais, em especial em pequenas chácaras, ir ao povo significava dificuldades em se deslocar. O povo, bem mais do que lugar para passear tinha as condições para se usufruir de certos serviços e se cumprir com certos deveres civis, como votar, fazer consultas, compras de roupas, móveis, objetos para casa, entre tantas coisas. No povo a vida era sentida como civilizada, uma ida para a cidade se definia por ocasiões de grande importância. O povo representada o lugar do progresso. 

Mas se deslocar do campo para o povo era tarefa difícil. Estradinhas precárias, muita pedra, muita areia ou muito barro depois das chuvaradas e das enchentes. O transporte era de charrete ou à cavalo. Em alguns locais tinha-se acesso pelos ônibus que realizavam suas rotas intermunicipais cruzando pela cidade, assim quem morava mais próximo das estradas conseguia usá-los como transporte: São Rafael, Loreto, Salso, Divisa, Palma, Cavajuretã, Vila Clara. 

Meu pai costuma vir ao povo pelo menos uma vez na semana na charrete amarela, trazia mantimentos produzidos em casa: laranja, bergamotas, ovos, mandioca, batata doce, leite.  Haviam muitas charretes, um transporte bem comum pelas ruas da cidade, os pobres cavalos precisavam usar ferraduras para aguentar o tranco das distâncias percorridas entre o interior e o povo,  sem contar que ainda andavam sobre as pedras irregulares do calçamento. 

 Cedo da manhã chegavam as pessoas do interior e se acomodavam na área externa do posto de saúde esperando a hora de abrir. A gente sabia da rotina ao avistar a Vanilda passar do outro lado da calçada, trabalhava todo dia no posto, chegava nas primeiras horas da manhã, organizava as filas e as consultas. Eu conhecia bem o cotidiano dela porque morávamos quase em frente ao posto de saúde. Uma vinda ao povo para quem percorria longas distâncias desde suas moradias no campo se pautava por motivos inadiáveis, raramente era por causa de visitas sociais, as pessoas se deslocavam mesmo por necessidades, por urgências como um velório ou uma consulta médica. 

Eu observava do portão de casa as charretes estacionadas na sombra do terreno da esquina. Se olhasse para outra direção via alguma charrete em frente à farmácia da tia Ivoloy. Quase sempre tinha alguém cuidando do veículo, aguardando quem ia comprar um remédio. Lá pela metade da manhã chegava a charrete do seu Ernesto, ele vinha oferecer as verduras de sua horta para minha tia, freguesa habitual do verdureiro mais conhecido da cidade. Ele vinha religiosamente no povo vender seus produtos, e tinha freguesas certas como ela, percorria muitas casas ao longo da manhã. Era um homem de ares germânicos, tez avermelhada, fosse por efeito dos dias de frio ou pelos de sol muito quente. De tanto pegar o gelo das madrugadas teve um espasmo que o deixou com o pescoço torto. Levou uma vida com o pescoço quase deitado sobre um dos seus ombros.

O povo a que meu avô mandava seus filhos entregar leite e comprar fumo de rolo e erva mate, era um outro mundo para quem vivia no campo. Dois modos de viver o tempo. Para quem vinha do interior, atravessando trilhas no campo, cortando caminho, abrindo uma quantidade de porteiras, o povo deslumbrava pelo seu progresso, pelas novidades no comércio, pelas notícias que corriam de boca em boca nas esquinas, pelas conversas rápidas com conhecidos nos bancos da praça. O ritmo de quem vinha do interior se alimentava do que o povo oferecia de novidades e de oportunidades. A escola era uma delas já as que existiam no interior ficam muito distantes uma das outras. Tivemos de nos deslocar do interior, do campo largo da liberdade, para ter aquilo que o povo tinha a nos oferecer. 

   


Carapé

O senso de localização de quem vive em uma cidade pequena segue indicações personalizadas, as zonas urbanas não são identificadas pelos pont...