domingo, 2 de abril de 2023

Um ano de findar etapas

Nas horas em que se distraía, vagando por pensamentos absortos, sem endereço certo, Lili costumava fixar seu olhar em algo inusitado. Observava a entrada e saída das abelhas sem ferrão que viviam em um pequeno buraco no tronco do cinamomo, aquele do banco de ferro onde o Vergilino sentava para tomar chimarrão, localizado bem em frente à janela do quarto dos arreios. As abelhas iam e vinham, talvez seduzidas pelo perfume das flores da primavera, localizada logo ao lado da cerca da lateral da casa, de onde se via o campo da ladeira. Eram inofensivas, então Lili podia se aproximar e analisar seu vai e vem para entrar no pequeno orifício da sua colmeia, disfarçado entre as cascas do tronco da árvore.

Os dias andavam tristes na fazenda, até insuportáveis. A casa estava silenciosa,  havia pouca gente da família, alguns homens no galpão e, claro, o Vergilino que não nos deixava sozinhas. Desde que a vó Cinda faleceu, eu costumava acompanhar minhas tias cada vez que elas vinham passar alguns dias na casa da fazenda. A Maria também seguia por aqui, mas como eu, parecia sem rumo, sem ter quem nos guiasse. A tristeza havia piorado muito com a perda inesperada do tio Ruco. Eu fiquei diminuída, meus grandes afetos partiram cedo demais. Cortaram-se laços de modo muito abrupto na vida de Lili e isso doía imensamente dentro dela.  

Naquele início de março começávamos nossa jornada para finalizar o ensino fundamental e Lili vivia grandes expectativas. Mas o acidente do tio Ruco nos pegou de surpresa, minha mãe chorava pelos cantos sem esperança. Eu só tinha o olhar perdido, sentava debaixo de um árvore na praça antes de voltar para casa, me dava uns minutos de silêncio, era minha forma de rezar, falava com Deus, porque tio Ruco importava demais na minha vida. Mas ele não resistiu, e o ano começava assim, muito dolorido.

A vida seguia seu curso, era ano de formatura, mais uma etapa se encerraria na nossa vida escolar. Aos poucos a rotina da escola foi me recuperando da tristeza. A novidade da escola neste ano era a chegada de alunos de Jaguari para cursar o segundo grau. Vinham de ônibus e chamavam a atenção. As meninas se alvoroçaram com os rapazes bonitos e mais maduros e a paquera estava liberada, embora fosse uma ilusão, pois não passávamos de umas pirralhas para os guris jaguarienses. 

O colégio se encheu de gente, à tarde era um agito nos corredores e nos pátios. O bar do Faete na esquina era uma atração. Sentadas nos degraus da entrada do colégio, a gente via a Catarina pular uma janela do prédio da esquina, e a fofoca rolava solta entre as meninas. A suspeita é de aquela era a janela do quarto do Lafayete, o dono do bar. Catarina era filha do sapateiro, nossos vizinhos que moravam de outro lado da rua, em frente a nossa casa. Tinha fama de espevitada e danada, e a alegria dela nos fazia bem.

Findada a jornada diária escolar, cruzávamos a praça para uma conversa nas escadarias do coreto ou rumávamos ao clube para uma partida de ping pong. Ali se reuniam os "feras" na arte de jogar ping pong, o Ciro, o Titão, o Vito. Na maioria das vezes, as gurias se reservavam ao papel de observadoras, mas a gente também gostava de jogar partidas entre nós. Invariavelmente eu levava uma "capinada" da minha mãe porque chegava bem depois da aula em casa, pouco antes do horário sagrado da janta. Lili ensaiava ares de uma liberdade em que se auto vigiava, o que dava a ela a sensação de que disfrutar de certas alegrias, aliviava sobremaneira as perdas recentes, que iam se tornando uma saudade imensa, mas gratificante por ter tido aquelas pessoas inigualáveis na sua vida. E assim seria, um ano de findar etapas.

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