sábado, 22 de abril de 2023

A cor da pele

Catarina, filha do seu Nelson, sempre andava pela porta do bar do pai, conversando com os hóspedes do hotel, que ficava na parte dos fundos da grande casa onde a família morava e trabalhava, atendendo no bar localizado na parte da frente. A casa ficava situada estrategicamente ao lado da rodoviária, era um entra e sai de gente no local, motoristas e passageiros em trânsito fazendo seus lanches e gente necessitada de ir ao banheiro. Em frente à praça, o casarão verde desbotado funcionava até tarde da noite. 

Naquele lugar, onde se mesclavam espaços entre o bar, a padaria e o hotel, havia o melhor sorvete da cidade, talvez por ser o único fabricado ali mesmo. Três sabores principais eram preparados pelo movimento sincronizado das pás de metal de uma máquina de fabricar sorvetes. Quando não dava tempo de tomar um sorvete, apressada para pegar o ônibus que a deixaria na parada da Divisa, em frente à fazenda, Lili comprava um picolé de creme holandês, seu preferido. Havia diversos sabores de picolé, alguns de puro suco congelado, outros cremosos, a base de leite. 

Sob aquelas tampas de metal do balcão estavam armazenados os cremes gelados dos sorvetes de morango, chocolate e baunilha, servidos fartamente em casquinhas crocantes, feitas de uma massa doce e porosa. Nada era mais saboroso para Lili do que aquele sorvete servido pela Catarina, acompanhado de um sorriso simpático e amoroso que ela nos dava como que para retribuir a preferência pelo sorvete do estabelecimento do seu pai,  e que  soava como um certo perdão pelo momento cruel da vacina que nos aplicava, pois ela trabalhava também como enfermeira no posto de saúde. Catarina tinha a cor e a doçura de um sorvete de chocolate.

Pessoas como a Catarina eram a própria resistência, trabalhavam muito, ela teve uma vida sofrida pelas mazelas de uma diabetes. Lili fazia mentalmente uma lista, relacionando a vida de certas mulheres como a de Catarina. Costumava observá-las, trabalhavam arduamente em certos circuitos familiares, outras vezes, porque sabia que em muitas ocasiões, elas passavam por invisíveis, se quer as notavam. A cor da pele as definiam, mas também definiam seu lugar naquele mundinho de uma pequena cidade do interior. 

Uma delas, Lili via todo dia. Gessi trabalhava com dona Lalá, nossa vizinha. Muito cedo da manhã e no final da tarde, de balde, vassoura e pano em mãos limpava o açougue do seu Noé. Um lugar que exigia higiene e limpeza constantes. Ela cuidava da casa, da comida e seguidamente eu podia vê-la encerrando as vacas de leite que seu Noé criava no campinho nos fundos de casa. Gessi amargurava a vida na bebida, dizem. Criou outra fortaleza, que era a Nádia, nossa colega do sexto ano. Uma potência de força física e raiva do mundo, que davam a ela uma resistência inabalável.

Ninguém se comparava em bravura à Neda. O capricho em pessoa, com certeza, razão de ser da sua profissão, lavadeira de roupas finas. Dedicava-se a alvejar toalhas de mesa, conjuntos de lençóis, guardanapos bordados e tantas outras peças de enxoval de muitas senhoras. A risada era solta e gargalhava nas alturas, no entanto a fúria se instalava naquele corpo como um furacão se acaso fosse discriminada ou ofendida. Senti a desconfiança da Neda no dia em que ousei, como pirralha metida que eu era, dizer a ela que precisava cuidar bem  do meu lençol bordado, feito com todo carinho pela minha mãe, parte do que eu havia levado comigo quando fui morar na cidade. Passei um bom tempo sentindo um grande mal estar pela ousadia de ter questionado o capricho da Neda.

Guiomar desfilava elegância com suas saias de cós alto e camisas bem ajustadas ao corpo bem desenhado. Ela deixava no ar a beleza das suas curvas e o sorriso solto com que saudava a todos. Ria com facilidade, era espirituosa e dava impressão de que nada a abalava. Casada com Tunico, o guarda e jardineiro da praça, impressionavam ambos pela simpatia. Dançavam lindamente nos bailes pelos clubes da cidade. 

A cor da pele marcava a força e a beleza dessas mulheres que passavam por mim, que cruzavam por mim. Lili levou tempo para compreender o que custava a elas se fazerem presentes, defendendo a pele da dor, da desconfiança, da humilhação, da discriminação. Eu via beleza e via coragem, mas não podia sentir por elas, não tinha a mesma cor da sua pele.

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