Lili recordava dele como a imagem de um tio adulto, de sorriso manso e amoroso. Todas as tardes, quando ele estava na casa da fazenda, tinha a hora do chá com biscoitos ou bolachas. O cheiro do chá de cidreira invadia a cozinha no meio da tarde. Ele sentava na lateral da mesa, naqueles bancos azul-turquesa igual a cor do armário da cozinha onde eram guardadas as latas com as famosas roscas de nata feitas pela minha avó e minha mãe. Colocava uma das latas sobre a mesa e arrumava um espaço para me colocar sentada bem ao lado dele e, enquanto colocava um boa porção de açúcar no chá, para logo sorvê-lo vagarosamente, ia me fornecendo pequenos pedaços de bolachas. Era um ritual de amorosidade que era tal qual a doçura daquele tio. Dele recebi o apelido de Lili, dizia que combinava comigo por eu ser tão pequena, de cabelos loiros e encaracolados nas pontas e com bochechas sempre rosadas: uma pequena Lili.
O laço que nos aproximava foi sendo bem amarrado pelos colos que eu recebia seguidamente. Ele me carregava pelo pátio, me trazia balas, tocava com a mão sobre a minha cabeça cada vez que eu passava por ele. Tudo que lembro dele é coberto de gestos de afeto, era aquele sorriso tímido que misturava um certo jeito reservado com timidez e mansidão. O tempo para ele parecia mais devagar. Era diferente do meu tio mais velho, que era agitado e cheio de rompantes. E também bem longe da inquietude e pressa características das minhas tias. Era o oposto, em muito se afinava com meu pai, foi por esta razão que depositei confiança em toda minha amorosidade por ele. Minha mãe, com quem ele era muito apegado, percebeu este laço que construímos e delegou a ele me levar para estudar. Então fui morar na cidade com ele, minha tia Tânea e um bebê que estava por chegar.
Entrar na escola foi um divisor de águas, me jogou da vida no campo para a vida na cidade, aprendi novas rotinas por causa do colégio: assistir às aulas, fazer os temas, cuidar do uniforme e estudar bastante. Nesses desafios lembro, ainda que vagamente, dele me acompanhar no horário de fazer os temas, me auxiliava com as contas de matemática. Se minha mãe ou meu pai não vinham me buscar na sexta-feira, ele me levava de ônibus no sábado, dia que ele se dedicava a cuidar das ovelhas da fazenda junto com meu pai. Ele parecia combinar perfeitamente com aquele rebanho de ovelhas, elas eram pacatas e ele cuidava delas no mesmo ritmo. Raramente se via ele irritado ou bravo, ficava ainda mais calado quando não gostava de alguma coisa, muita das vezes preferia se recolher.
Meu tio Ruco comprou um fusca, o carro possibilitava que ele em alguns dias da semana fosse à fazenda, em geral no final da tarde, para curar as ovelhas, revisar o rebanho com meu pai, dar uma olhada na minha vó e tomar um mate com eles. O fusca era de um cor muito difícil de definir, nem marrom, nem amarelo, um cor que costumávamos identificar como de "burro quando foge".
Fusca era o carro do momento, quem podia comprar um carro preferia o fusca e a cidade foi sendo invadida por fuscas de várias cores: o fusca vermelho do Seu Adalberto Cony, escolhido a dedo por causa do time favorito, era um colorado fanático; o fusca azul claro do professor Eugênio, nosso professor de inglês da oitava série, um italiano grande, com um tom muito exigente, imponente quando lia os textos em inglês. Qualquer pergunta desconcertante que fazíamos subia um rubor intenso no seu rostro e pescoço, por causa disso, a gurizada o apelidou de peru. Ele estacionava o fusca bem em frente à escada da entrada da escola, saia sempre muito apressado, ou para dar aula na Escola da Coqueiros, bem ao lado da igreja luterana, ou para retornar para Jaguari onde morava; o fusca branco da professora Lina, nossa simpática e amorosa professora de artes, no caso dela, o fusca ficava estacionado do outro lado da rua, em frente da casa do Vito, meu colega desde a primeira série, e do pequeno estúdio de fotografia do Seu Olívio; o fusca verde do padre Cargin, estava sempre estacionado na rua lateral da escola, bem na descida, para facilitar o arranque. Ali o fusca dele era alvo das traquinagens dos guris, esvaziavam os pneus do fusca do pobre do padre, sem contar o boato que se espalhava pela cidade de que o fusca estacionado ali, era mesmo um disfarce, porque na verdade o padre descia em direção à casa da tia Ney, a famosa casa de prostituição da cidade, localizada logo mais abaixo na rua, lá onde iniciava a estrada de chão batido. No fusca verde, o padre Cargnin fazia suas viagens de exploração paleontológica e arqueológica, vivia subindo nos cerros do Loreto realizando suas escavações em busca de fósseis e vestígios arqueológicos. E, claro, não se pode esquecer do fusca mais famoso da cidade, a fama era mais pelo motorista do que pelo carro, o fusca branco do seu Carlito Gabriel, vizinho do meu vô Joãozinho. Cada passagem do Seu Carlito pela cidade era uma aventura na certa. Nas esquinas, ele apertava com força a buzina apressando quem pudesse cruzar o caminho, carro ou pessoa, colocava a cabeça para fora da janela e gritava: "pobre, sai do caminho", este era um dos xingamentos para quem parava o carro na frente do seu fusca e atrapalhava ele de seguir caminho. No fusca cabia de tudo: melancias, sacos de sementes, seu rádio, cuia e térmica de chimarrão.
No fusca do tio Ruco, Lili fez visitas ao interior do município. Era época de eleição, eu não entendia muito bem como ele podia ser candidato a vereador, calado como era e com certeza sem talento e preparo para discursos e promessas, mas era com certeza gente boa, estava estampado na cara nele. Eu me divertia com essas viagens, valia uma visita na fazenda do seu Antero e de dona Madalena Xavier para comer doces em calda e as famosas rapadurinhas de leite, além é claro de brincar com as meninas. Tempos depois, a filha mais nova, a Cristina, foi minha colega na quinta série. Dona Madalena teve uma loja na cidade, lá minha vó comprou o último presente de aniversário que ela me deu. Eu escolhi na vitrine da loja uma pulseira de prata, feita com argolas minúsculas, que se encaixavam como uma mola, minha primeira pulseira. Tio Ruco sempre fazia uma parada na fazenda, na ida ou na volta, quando fazia viagens rápidas a Jaguari. Mal ele apontava na porteira, eu corria para o tanque no pátio da parreira, lavava os pés, colocava um chinelinho de borracha, ajeitava o cabelo e pulava para dentro do fusca. Eu me fazia de companhia para ele, nem saia de dentro do carro, estava ali só pelo passeio e por aquele momento silencioso, só sentindo o vento morno entrando pela janela.
Meu tio Ruco morreu jovem, justo em um acidente com aquele fusca de cor estranha. Todas as lembranças que tenho dele, centram-se em um sorriso manso, nas falas espirituosas e nas conclusões certeiras sobre certos assuntos, sempre depois de um longo tempo de escuta e observação. Ele foi breve nesta vida, uma brisa calma e calorosa que passou por nós. Todo chá de cidreira que tomo, vem junto uma calma no meu coração e lembro do seu sorriso tímido e doce.
Como não lembrar,rir,chorar, saudade,tempos áureos
ResponderExcluirTivemos três fuscas: o 9250, VERDE oliva, queria de minha irmã, Nair, o outro, azul, do meu ex-sogro e o verdinho clarinho, no qual viajábamos de São Borja a Guaíba, todos fins de semana. Tuas histórias me levam ao meu passado, Lili.
ResponderExcluirBelo texto e belas memórias, Eliana!
ResponderExcluirQue lindas lembranças! O final do texto é comovente.
ResponderExcluirAs lembranças boas ficam e acalientam nossos corações. Lindo texto prof. Eliana. Bjos
ResponderExcluirFinal emocionante realmente...e que relação bonita.
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluir