sábado, 29 de janeiro de 2022

Gosto de pitanga

No calendário da Lili, novembro era um mês marcado por três acontecimentos. Iniciava com o dia de finados e toda a melancolia que podia existir de um dia como aquele. Nem mesmo o ritual de colocar flores para os entes queridos, como gesto amoroso, retirava da data a tristeza que ela continha. Em meados de novembro as pitangueiras enchiam-se de frutas de tons variados desde o verde claro, amarelo, laranja, vermelho até chegar no ponto das frutas quase negras, bem escuras, maduras e deliciosamente doces. Logo para final do mês chegavam os esquiladores com suas tesouras afiadas para fazer o salão anual das ovelhas, que nesta época do ano estavam cobertas de uma abundante camada de lã. Havia na tosquia duas finalidades, retirar a lã para comercializar e também aliviar as coitadas da farta cobertura de lã, principalmente porque já fazia dias de muito calor no final de novembro.

A temporada das pitangas com certeza aguçava nosso desejo de andar pelo campo das vacas mansas. Quase na altura do pequeno açude havia um mato onde predominavam pés de maricás e de pitangas. As idas ao matinho das pitangas fazia parte do programa da pescaria no mês de novembro. Conhecíamos de memória quais daqueles pés tinham as pitangas mais doces e as mais diferentes em textura e sabor.  

Em outras ocasiões, nem precisávamos da pescaria para partir rumo ao matinho das pitangas. Atravessávamos pelo arvoredo velho e na cerca que separava-o do campo das vacas mansas, pulávamos sobre o arame, apoiando os pés em dois tocos de árvores que havia de um lado e outro da cerca, bem junto a linha das bergamoteiras. À direita duas enormes araucárias pareciam duas belas guardiãs nos espreitando.

Lili acompanhava os guris para o flanco de guerra, batalhas de trabuco com bolinhas verdes de cinamomo. Assim que passávamos pela cerca avistava-se uma linha composta por vários pés de velhos cinamomos gigantes. Ela começava nas araucárias e ia até as imediações do matinho das pitangueiras. Subidos no alto dos cinamomos, os guris simulavam uma guerra insana com as frutas verdes da árvore. Lili, então, ficava apoiada no tronco de um dos cinamomos onde ela pudesse ficar protegida da intensa batalha que eles se envolviam. Não lhe interessava aquela guerra de meninos. O tempo dela era para contemplar o campo que descia em direção à várzea até dar no arroio da Divisa. E quando sol se punha, era magnífico ver a silueta dos cinamomos que se projetava no final da tarde sobre a lavoura de melancia do meu pai, naqueles dias já com os pés bem desenvolvidos e com frutas crescidas. Em dezembro teríamos melancias maduras. Aquela hora e aquele momento eram para mim a idea mais perfeita do bucólico.

A pescaria do domingo no açude trazia anda mais expectativa. Lili não pescava, ficava observando o movimento ligeiro dos lambaris nas partes mais claras da água. Maria nos vigiava, um olho nos mais velhos que se aventuraram nas partes mais zonas mais fundas do açude e  outro nos pequenos que ficavam nas margens molhando os pés e jogando água para o alto, dois ou três realmente se ocupavam da pesca. Lili rabiscava desenhos no chão com a ponta de uma taquara, recolhida junto ao taquaral que protegia a taipa do açude, fazendo uma sombra fresca sobre a qual colocávamos nosso material de pesca, os lanches e alguma colcha velha para sentar. Já chegávamos alimentados de tanta pitanga, no meio do caminho a parada no matinho era obrigatória. Nossas risadas eram pintadas de cor de pitanga, o contorno das nossas bocas enchia-se de um lambuzo avermelhado de puro contentamento, ficava impregnado na gente o gosto das pitangas do matinho do campo das vacas mansas.

Na volta para casa ficávamos competindo salto sobre o grande cocho de sal. Um tronco de árvore, com uma vala funda no meio, onde se coloca o sal para as vacas. Escorado por cavaletes nas duas pontas, ele ficava elevado do chão, mas não tão alto que aos dez anos de idade não pudéssemos pular. Localizava-se depois da cerca do arvoredo, atrás das bergamoteiras, no lado oposto das araucárias. No final da tarde, ali naquele cocho, além da brincadeira de saltar sobre ele, também sentávamos a espera do pôr sol para ver como na luz dourado do poente a linha dos velhos cinamomos da época do nosso bisavô, ficava ainda mais gigante. O nosso dia acabava farto de tantas brincadeiras e o gosto das pitangas persistia no nosso paladar, estávamos satisfeitos de vida.   

2 comentários:

  1. Amada!!!!Que memória espetacular!! Só Deus para te dar este dom!!!Lembranças vivas de um passado já distante!!!!

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