domingo, 20 de dezembro de 2020

O cheiro do doce de figo

A pequena Lili, como tio Ruco carinhosamente me chamava, desde muito cedo aprendeu sobre a vasta sensação de vida que os cheiros provocam na alma. O aroma do chá de erva cidreira ou de camomila que ele bebia no meio da tarde, sentado envolta da mesa da cozinha, me colocava sobre a mesa ao lado da lata de bolachas e me fornecia generosos pedaços de roscas de polvilho, esses aromas entraram no meu corpo aos dois anos de idade e refinaram meu olfato para os cheiros ao meu redor. A partir daí fui sendo, cada vez mais, despertada para a experiência de sentir todos os cheiros que abundavam na vida do campo. O cheiro da terra molhada entrando pelo cômodos da casa em dias de chuvas esparsas e torrenciais de verão, refrescando todos os ambientes; o das folhas dos eucaliptos esmagadas, depois de tantas vezes pisoteadas pelo gado, nas suas mesmas e constantes trilhas que percorriam entre as árvores enfileiradas na avenida de Eucaliptos na entrada da Fazenda; ou o cheiro forte do angico queimando no fogo do chão ou ainda o do couro queimado do gado que levava no lombo impiedosamente a marca de um ferro em brasa; ou o adocicado perfume do Jasmim vindo do jardim, que invadia o nosso quarto de um ar úmido e perfumado através das janelas da frente, escancaradas por causa do calor do verão. E também o cheiro do sal no frescor da estufa e o do pinhão e do milho verde assados pelo Vergilino no Fogo de chão. Toda esta profusão de aromas ia calcando em mim cada sabor provado, cada ar perfumado ou mesmo cada odor desagradável como os dos excrementos no pátio dos cavalos. As muitas sensações de Lili eram associadas aos cheiros que a vida no campo trazia todos os dias para dentro dela. A mais marcante sem dúvida era a do cheiro do doce de figo.


O cheiro do doce de figo era prenúncio de Natal e do encontro familiar no primeiro dia do novo ano. Lili aguardava ansiosa a chegada das tias e primos, era uma expectativa amorosa pela presença de mais gente na casa, os presentes das tias, que de tanto que me conheciam, uma vez que outra repetiam a ideia do presente. O ano novo tinha lá seus aromas específicos também, como o do churrasco feito debaixo da sombra dos pés de uva do Japão, exalando o cheiro particular da gordura da carne ovelha pingando na brasa e se espalhando para os lados da ladeira, levado pelo vento morno daquele primeiro dia do ano novo, dia em que a família se reunia  e saboreava uma carne bem assada pelo meu pai, em um almoço que se estendia pela tarde, até a chegada das sobremesas tradicionais: a torta de Nescau, providenciada sempre pela tia Jane e a salada de fruta que ela preparava nas primeiras horas da manhã. Logo, tia Maria trazia seu famoso pudim de leite com queijo, mais a ambrosia da Cisa, que ia sendo feita nos fins de semana quando ela vinha cidade, e o doce de figo da tia Ivoloy ou o da minha mãe.

Mas o de figo...ah o doce de figo, era preparado dias antes do Natal. Quando Lili cruzava a porta do galpão para o pátio da parreira, sentia o cheiro do doce que vinha entrando por suas narinas. Ele me conduzia em direção à entrada da cozinha, e ali, sobre o fogão à lenha em um tacho de cobre, o doce fervia e o seu aroma se espalhava pelas demais peças da casa. Assim que os figos ficavam no formato ideal para o doce em calda, eram colhidos e limpos. As figueiras se localizavam logo depois da parreira antiga, que ficava atrás dos pés de butiá. Também havia alguns pés de figo para doce em calda nas imediações das bananeiras, alguns não eram colhidos para serem saboreados depois de maduros. A limpeza dos figos não era tarefa fácil, deixava as mãos das mulheres da casa em estado deplorável, as da minha mãe em especial, no seu afinco de deixar as frutas sem nenhum vestígio daquela película áspera e desagradável do figo ainda verde, suas mãos ficavam avermelhadas, às vezes, cortadas de tal era a aspereza da fruta.   

Na minha casa não tínhamos árvore de Natal, nem presépio, nem luzes, nem luz elétrica havia na nossa casa. Não era costume celebrar o Natal. Os presentes que ganhávamos eram doces ou então uma roupa nova para a entrada do ano novo na semana seguinte. O que marcava a proximidade do Natal era o preparo do doce de figo, porque era uma das sobremesas servidas no dia primeiro do ano vindouro. Os doces em calda eram também oferecidos às visitas de final de ano, parentes que apareciam nessa época na fazenda para suas visitas anuais, principalmente aqueles que vinham de longe. A época do figo coincidia com a do Natal, por isso Lili sempre associava o cheiro do doce com o Natal. 

O cheiro do doce de figo em calda me despertava expectativas sobre os dias que se aproximavam do novo ano. A pequena Lili media o tempo pensando que em breve estaria correndo e brincando no gramado em frente à casa da fazenda com os primos e primas e seriam dias de muitas brincadeiras e de  muitas alegrias. O cheiro do doce de figo mais que o Natal era o anúncio de tempos de casa cheia, cama redonda no chão da sala, caçada de vagalumes, noites de localizar o Cruzeiro do Sul para os lados da cidade e as três Marias acima do cinamomo, aquele cheio de orquídeas e cactus de flores vermelhas, bem no portão da frente. Buscar Sputinikis naquelas noites escuras em que o céu nos cobria de muitas...muitas estrelas. E que de algum lugar, do nada, viria o cheiro da mistura das folhas de eucalipto, bostas de vaca e as brasas sobre um pedaço de lata velha, repelente natural que o Vergilino providenciava para espantar os mosquitos.

5 comentários:

  1. Figos açucarados, vagalumes e mais perfumes natalinos... Será que voltaremos a eles com toda sua doçura envolvente? Ah, Deus, ou essa entidade que nos faz acreditar que ainda somos humanos, será que viveremos toda essa beleza olfativa novamente? Figo pra mim lembra quando estava grávida da Aline. Devorava-os mal saídos do tacho da sogra...vagalumes, uma noite dessas entrou um no meu quarto, lembrei-me da infância minha e dos dois filhos...Lili, tuas lembranças são um pouco minhas também...

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  2. Lembranças que ficaram em nossa memória,ainda bem que vivemos isso e bom te ajudar com os figos,só saudade

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  3. Bah...LILI,deve publicar estas memórias, são lembranças muito ricas da infância, adolescência vividas pela família ROSA! Abraço carinhoso ❤️❤️

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  4. Belas memórias olfativas. Não me canso de ler as tuas narrativas tão cheias de vida.

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  5. Lindas lembranças Lili💞 Tua narrativa me remete a um passado que havia esquecido 🌹

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