domingo, 2 de maio de 2021

O Tempo e as canções

Uma área localizada quase em frente ao poço facilitava a entrada para interior da casa de quem vinha pela calçada dos fundos. Era um pequeno espaço aberto para lado da parreira, em que havia um tanque baixo e  água encanada. Ali o pessoal lavava os pés e as mãos antes de se dirigir à mesa da sala de jantar para as refeições, sobretudo em dia da casa cheia de gente. Nele, os pequenos tomavam banhos rápidos para tirar a poeira do corpo que juntavam durante as brincadeiras na terra solta debaixo dos cinamomos da frente da casa. A gente chamava ele de o tanque da tia Jane, dizem que o batizaram assim porque a ideia de ter este lugar para higiene pessoal foi dela, coisas de seu famoso capricho com o corpo e com as vestimentas. Havia ainda, naquela minúscula área, uma janela basculante que era por onde entrava luz e ar no banheiro e um vaso de folhagem com folhas verdes escuras e largas, quase junto à porta, que uma vez ou outra, dava uma flor branca muito perfumada.

Cedo da manhã, durante o verão, as tias passavam roupa na longa mesa da sala de jantar. Antes da chegada da luz elétrica passavam as roupas da casa com ferro à brasa. As brasas eram trazidas do fogo de chão do galpão e o Vergilino se ocupava de manter o fogo aceso e a produção de brasas para abastecer o ferro de passar. Quando as brasas do ferro se esmoreciam, as tias gritavam e ele então se aproximava pelo pátio, andando pelas sombras da parreira, trazendo em uma das suas mãos uma pá de cabo longo, feita de cabo de vassoura e de latas de azeite velhas, que vinha carregada de brasas flamejantes. A roupa era passada em todas as suas dobras, frente e verso, para desamassar o máximo possível, especialidade da Tia Cisa ou Cisa como passávamos a chamá-la na adolescência. Não sei bem a razão de deixar de chamá-la de tia, talvez porque ela era a mais nova das irmãs da minha mãe ou porque a vó Cinda desfilava o nome de todas as filhas, quando necessitava de algo, e eu era a última a ser chamada logo depois da tia Cisa. 

Era divertido ver como a Cisa se dedicava à perfeição no passar as roupas, ocupava toda a grande mesa de jantar, com pilhas de roupas por passar. Colocava-se um cobertor bem usado e gasto, sobre ele um lençol igualmente já bem velho, assim ambos eram usados para acolchoar a mesa, esticando-se sobre eles as roupas a serem passadas. De um lado da mesa, um copo de água para esborrifar sobre o tecido e, do outro, as roupas já passadas. Conforme terminava de passar as peças, colocava-as sobre as cadeiras,  ordenadas por tipo e tamanho. Ela fazia paradas para fumar, deixando o cigarro apoiado sobre o cinzeiro de vidro, fazendo pequenas pausas para tragar e seguir na tarefa. Deslizava o ferro cuidadosamente sobre os lençóis e esbravejada que eles mais pareciam ter saído do "bucho de uma vaca". Todos sabiam na casa se ela estava fazendo faxina ou se estava passando roupas, porque o rádio a acompanhava e ressoava a todo volume tocando as canções da época.

Lili associava o ato de passar a um momento de reflexão, uma hora de calmaria e de pensamentos silenciosos das mulheres da casa. Minha mãe passava rapidamente o ferro à brasa sobre as roupas, queria livrar-se das pilhas de roupas que se acumulavam, sempre apurada em dar conta de muitas outras tarefas por fazer ao longo do dia. Também passava roupas muito cedo da manhã, enquanto meu pai tomava o seu primeiro chimarrão do dia, ao som das músicas gaúchas no alvorecer da rádio Jaguari. Quando ela estava sozinha, cantava uma música bem baixinho, quase um sussurro, mas eu nunca esqueci da letra da música "Carinhoso", de Lupicínio Rodrigues, igual aos trechos do Luar do Sertão que a vó Cinda raramente cantarolava.

Nos fins de semana, nos piqueniques coordenados pela Maria, a gente aprendia a bailar ao som do xote laranjeira. No campo a música gaúcha era a tradução das dificuldades e das alegrias da vida no meio rural, ainda que as canções parecessem sempre a um lamento, uma saudade contínua de algo vivido no passado, elas marcavam a jornada da vida campeira, no lavrar ou no lidar com o gado. Os programas da rádio dividiam o dia em: madrugada, hora do almoço e entardecer, e para meu pai definiam também os horários de sorver o chimarrão. Nos domingos, com as tias em casa, a gente podia ouvir as músicas do momento no toca discos vermelho da tia Jane, portátil e movido à pilha. Nos anos 70 era uma novidade ter uma aparelho para tocar os LPs que elas colecionavam, foi deste momento que Lili se apaixonou pelo timbre do Caetano Veloso e se impressionava com a audácia dele e de Chico Buarque cantar "Deus me deu perna comprida para poder fugir da polícia.... diz que Deus diz que dá". Tempos depois, ganhei da Cisa meu primeiro LP do Roberto Carlos, penso que foi porque eu não parava de cantar "Quero que vá tudo para o Inferno...". De todas as músicas que ia conhecendo e as que estavam sempre ao meu redor, uma onda delicada se espalhava no ar ao escutar meu pai repetindo "passarinho preso na gaiola voou...voou...voou." Lili era um passarinho liberto na vagareza do tempo da vida rural.

4 comentários:

  1. Texto lindo, sensível e comovente. Repleto de saudade, uma palavra portuguesa. Excelente leitura!

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  2. A Lili me lembra da minha infância e adolescência. O tanque de água, quadrado nas minhas memórias, remonta à época marginal, meio cria arteira e meio adolescência que já se engraçada pelo neto da Vó Ceci, naquele casarão lindo em Pedro Osório. Lili, quase sinto o cheiro da roupa passada a ferro com brasas, quase sinto o cheiro dos lençóis que minha mãe alisava com o ferro. As músicas, ah, sou sensível a todas que citaste, porque delas tomei emprestado a cidadania que hoje me fez gente. Tens certeza que não adolescência juntas? Rsrs. Teu texto é sempre uma jóia bela e simples por isso rara.

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