segunda-feira, 17 de maio de 2021

Os segredos dos baús

Em cada quarto da casa da fazenda havia um baú onde se guardavam normalmente cobertores, colchas pesadas e mantas. Embora alguns desses baús fossem, na verdade, antigas malas de madeira arrematadas com faixas de couro e tampas com dobradiças, conhecíamos como baús. Na reforma da casa essas malas-baús foram restauradas, forradas com papéis de estampas delicadas, ou com papel contact imitando cor de madeira. Eles foram pintados e renovados para que se pudesse guardar dentro deles as roupas de cama, sobretudo, as cobertas de uso da família. Em umas das suas férias de verão, Lili e os primos acompanharam e auxiliaram tia Nira e tia Jane no dedicado trabalho de restauro dos móveis da casa, etapa final da grande reforma da casa no final dos anos 60.

No quarto da vó Cinda, o baú tinha outra finalidade: era lugar de guardar as memórias da família, lá ficavam o álbum marrom de couro com suas folhas duras de cor cinza escuro, iguais as de um cartão, separadas por um fino papel de seda que protegiam as fotos preto e branco, dispostas e fixadas por elegantes cantoneiras escuras. Na parte da frente do álbum, havia um espaço destinado para um retrato, e a honra coube ao meu tio Ruco, uma foto dele jovem e lindo, posando de terno escuro e gravata borboleta. Um álbum de fotografia era uma relíquia familiar, talvez por isso fosse muito bem guardado dentro um caixa no interior do móvel. No baú ainda eram guardadas caixas de camisa com documentos, com cartas dos parentes, lembranças de festas e santinhos com convites de missa de sétimo dia, além dessas caixas, haviam outras com amostras de crochê e também uma cheia de folhas com modelos de desenhos para bordar, os chamados riscos de bordado. 

Durante o período de internato no Colégio de Irmãs de Jaguari, minha mãe e minhas tias aprenderam, ainda meninas, a bordar toalhas e lençóis com maestria. Os riscos de bordado formavam álbuns repletos de desenhos de buquês de rosas, cravos, papoulas; guirlandas ornamentadas com profusão de flores e arabescos e cornucópias explodindo flores do campo. Esses álbuns de riscados à lápis sobre papel de seda proporcionavam um exercício de desenho para Lili, que os copiava colocando sobre eles outro papel de seda, e assim movimentada agilmente as mãos refinando sua motricidade, fascinada pela beleza dos traçados riscos e das composições desenhadas para os bordados. O baú do quarto da vó Cinda era aberto seguidamente para se buscar essas amostras de crochê, os tais riscos de bordados, ou por ocasião de uma visita, ou então por simples curiosidade, em que olhávamos o álbum para o reconhecimento de algum parente. Ali ficavam presas muitas lembranças do passado, receitas das artes manuais da vó e das mulheres da família, e claro, segredos escondidos, perdidos em meio daquelas cartas, fotos e objetos, no enorme quebra-cabeça a partir do qual se podia armar a história familiar.    

Mas baú de verdade, era o do antigo quarto dos meus avós que foi usado pela vó Cinda até o início da sua viuvez. Daí pra frente, passou a ser quarto das filhas casadas quando vinham visitá-la. Era o quarto do meio, ficava entre a sala de estar e grande sala de jantar. Tinha uma janela grande que dava para o jardim, de onde se podia ver os reflexos do primeiro facho de luz do sol nascente, batendo lentamente sobre o tronco do velho pé de camélia. O quarto mais requintado da casa tinha móveis de madeira finamente decorados, com detalhes em baixo relevo, contornos feitos com riscos leves de uma decoração com ares neoclássico. A penteadeira ficava em um dos lados da cama, com seu espelho de cristal, tampo de mármore branco e prateleiras estreitas localizadas entre o espelho e o tampo, nas quais se apoiavam os castiçais de velas, além de alguns potes de creme. Enfeitava-se o centro do tampo de mármore com um porta-joias de porcelana e um guardanapo feito com linha mercê crochê, a famosa linha ultrafina com que se faziam conjuntos de guardanapos, que mais se pareciam a rendas finas e delicadas, por isso eram apropriados para decorar uma penteadeira. Do outro lado da cama, havia uma mesa de cabeceira alta, onde se colocava, providencialmente, uma lanterna. Na parede em frente à cama de madeira com sua cabeceira ampla, estava o guarda-roupa e, ao lado dele, um baú grande na forma de arca, forrado com um plástico escuro e grosso que lembrava a textura de um couro, em toda volta do móvel haviam barras de madeira, presas com tachas de metal, amarrando as partes que então compunham a grande arca, o famoso baú do enxoval da tia Santinha.

Lili conhecia tia Santinha pela presença imponente daquela arca, o baú em que cabiam muitas cobertas e muitas histórias. Tia Santinha era irmã do meu avô Alberto e casou-se com um negociador de gado vindo de muito longe, de Minas Gerais. Jovem, bonito e elegante, usava roupas de boa qualidade, e com pinta de quem tinha posses, o tal rapaz buscava uma moça para se casar e foi informado por um fazendeiro da vizinhança, que lá na fazenda do meu bisavô Alfredo morava uma moça muito linda. Chegou a cavalo à fazenda, garboso e com novidades de outras bandas, logo se encantou pela tia Santinha, comprovou que de fato ela era uma jovem muito bonita e delicada. Ela então apressou-se em providenciar seu enxoval, que coube todo no baú, nele também eram guardadas as relíquias do noivo: todos os complementos de prata do conjunto de arreios que usava para montaria. Casaram-se e partiram para estabelecer moradia em Cruz Alta,  e lá, posteriormente, abriram uma pensão. Dele, também ficou de lembrança na fazenda um pé de coqueiro, plantado bem no meio da mangueira das vacas mansas, chamava-se assim porque ali se encerravam as vacas para a ordenha.  

Tia Santinha morreu antes do quarenta anos e seu marido, aquele jovem garboso e dado a negócios instáveis, partiu antes dela. Os filhos foram acolhidos por sua mãe, minha bisavó Lídia, de quem ela havia recebido o nome de batismo. E o baú na forma de grande arca voltou para fazenda. Décadas depois, quando Lili era muito pequena, o baú era um móvel intocável, quase nunca era aberto, vez e outra era aberto para arejar e receber um pouco de sol. Ali dentro, havia agora outro enxoval, composto de lençóis, toalhas, conjunto de guardanapos, colchas, tudo ricamente bordado com esmero e afeto inclusive nos monogramas, uma assinatura dos noivos com suas iniciais L&M entrelaçadas, que identificavam aquelas peças adormecidas por longos anos dentro do baú. Ele, então, nesta época, passou a servir apenas para guardar o enxoval de um casamento que não se realizou.

5 comentários:

  1. Na minha casa...os álbuns e os "riscos" de bordado ficavam em uma grande e pesada mala. Muito brinquei de "copiar" tais desenhos...Era uma aventura olhar as fotos antigas e imaginar a história daquelas pessoas desconhecidas, mas próximas pelo sangue.

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  2. Eliana, mais um texto comovente, repleto de lembranças que se transformaram, a partir de suas palavras, em poesia.

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  3. Minha mãe tinha um baú no qual guardava de tudo um pouco. Esse tudo um pouco contava muito de sua vida, incluindo aí,o vestido de minha irmã mais velha, a Ia, quando seu pai morreu. Era um vestidinho de fundo preto com florzinhas brancas. Também, bem no fundo desse baú dormia seu sono eterno, minha boneca de louça, a Julinha, que chorava e abria e fechava os olhos. Lembro do cheiro dela. Brincar com ela, para mim era um acontecimento! Após, a mãe a guardava com todo o cuidado e carinho. Alisava o vestido de cetim amarelo, ajeitava seus cabelos de lã e se despedia instando a que eu fizesse o mesmo. E lá ia a Julinha para o fundo do baú, até que eu pedisse pra brincar em outro dia. No meio das cartas, de fotos antigas, havia também um ferrinho-de ferro, mesmo. Eu passava as roupinhas das outras bonecas, brincava um dia inteiro com ele. Enfim, Lili, novamente teu texto me conduz aos caminhos das saudades, do tempo que eu era, como qualquer criança, inocente. Enxoval nunca houve. Ela não fez, não guardou nem para mim nem para minha irmã. O que sinto nas tuas palavras é pura emoção e perfume de manhãs orvalhadas. É pura poesia. Obrigada.

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  4. Lindo texto, marcado por lembranças cinematográficas!

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