domingo, 17 de janeiro de 2021

Lili chega à escola


O sonho acalentado de Lili naqueles dias de aprendizado com a Vó Cinda enfim iria se concretizar. No alto dos meus seis anos eu não tinha clareza sobre o que viria a ser um afastamento da família e a saída daquela vida livre no campo. O fascínio pelas palavras já me dominava e a escola era um portal, não sabia bem onde ele me levaria, mas me entorpecia apenas com as possibilidades de conhecer outro mundo.

Minha mãe confiava amorosamente no meu tio Ruco e o fato da tia Tânea ser professora aumentava a segurança na sua decisão de me levar para casa deles, onde eu iria morar enquanto estudava. Lembro de chegar com uma sacola de roupas, de me mostrarem meu quarto. Nele havia uma cama com uma cabeceira estofada de uma cor de cenoura e sobre a cama uma colcha de listras muito finas e coloridas. Certamente o lindo lençol com cachopas de flores do campo, bordado pela minha mãe, ficaria perfeito naquela cama. Havia uma janela para lado oeste, por onde entrava o sol da tarde. A mudança me colocou em outro ambiente, outras relações de afeto, era um corte na minha vida de criança rural.

Fui levada à escola pelos meus tios e logo aprendi o caminho de casa até o Colégio Borges do Canto. Era uma escola de um só andar com dois grandes blocos de salas, toda pintada de um amarelo claro, salas tinham janelas altas, pintadas de cinza claro. A diretora era Dona Celi e me recebeu com seu sorriso doce e jeito tranquilo. Ela tinha  o rostro redondo, pele clara, cabelo curtos e fofos, era uma figura acima do peso, mas tinha uma suavidade no andar, mal se ouvia, do nada ela aparecia na porta da sala de aula. 

Aprendi logo que precisava entrar na fila no pátio e, em fila, ir até sala de aula, passando pela fiscalização do uniforme, não correr pelos corredores, pedir licença ao professor e fazer silêncio durante a aula e, especialmente, aceitar que na escola eu não era Lili, valia meu nome de batismo tal como estava na lista de chamada. Eram os anos setenta e uma vez por semana tínhamos uma hora cívica para hastear a bandeira e cantar o hino nacional. Cedo Lili descobriu o que era disciplina, e se assustava com a possibilidade de reclamações do seu comportamento, sobretudo, pelo medo de ter de deixar a escola.

Este primeiro ano marcava uma virada na vida de Lili, o início das amizades fora do círculo dos primos e irmãos. Os magrelas Tivico e Vito, o primo Titão, os baixinhos, Tampinha com seus cabelos de anjo e João Antônio com seus vibrantes olhos azuis. As primeiras amigas, a Márcia, que depois foi vizinha e minha companheira de passar na casa da professora do segundo ano, para irmos juntas à escola. Chegávamos orgulhosas de acompanhar a professora até entrada da escola. A espevitada Tina, meio desajeitada e dengosa, a tímida e carinhosa Iolanda, a brava e valente Cecília com suas longas tranças e o inquieto e desobediente Ricardo. Depois vieram outros colegas, o Teta, que era parceiro nas apresentações da escola e a Valéria, menina acanhada e discreta. E também a Osmilda, destoando por sua altura, e a doce Tânia que usava cabelos curtos como eu e me acompanhava na volta da escola nos primeiros tempos, quando morei na esquina da rua Brasil com a Rua Carapé.

Os primeiros dias foram de desafio porque Lili não conhecia as rotinas da escola, não foi ao jardim infância, mas já manuseava o lápis com a desenvoltura adquirida pelas práticas de escrita comandadas pela vó Cinda. Esquecia de responder "presente" a cada vez que a professora lia a lista de chamada, que se distraia com os barulhos vindos da rua, no entanto, observava todos e absorvia tudo. Em casa, durante a semana, tio Ruco me auxiliava nos temas na mesa de jantar, acompanhando-me na hora das tarefas. Nesta escola, também fui marcada pelo primeiro exemplo de preconceito e racismo. Tínhamos uma colega magrinha, negra, que usava duas tranças finas e ela sempre nos despertava um sentimento de compaixão, pois cada vez que não sabia responder a uma pergunta, a professora batia com a régua nos dedos da Sílvia, quando não a arrastava pelas frágeis tranças que usava presas sobre o alto da cabeça. O mais horrendo daquele momento era que sabíamos que a Sílvia era criada pela mãe da professora. Ficávamos todos atônitos, entre o medo e o pavor que aquela cena nos provocava. 

O pátio da escola era amplo, pulávamos sapata, desenhada com giz na calçada da área coberta, localizada em uma das laterais, na entrada na escola, ou ao lado do mastro da bandeira. Brincávamos de pega-pega, de adivinhações, "se canoa virar...", debaixo das árvores que faziam sombra no pátio da escola ao longo do muro que separava e protegia a escola da rua. 

No pavilhão, nos fundos, podíamos brincar em dias de chuva e lá formávamos as filas da entrada e do retorno do recreio. Dona Joana e Dona Ana eram as serventes da escola e faziam aquelas sopas entulhadas de legumes e verduras. Para Lili as sopas tinham uma aparência asquerosa, mas não deixavam de ser nutritivas e, às vezes, até saborosas. Quando tinha umas moedas eu comprava umas merendinhas Mirabel ou um sorvete com cobertura de Maria mole por causa dos anéis que vinham colocados no topo, era um brinde. A melhor merenda da escola era servida em dia de muita chuva, pois ficávamos dentro da sala de aula no horário do recreio e Dona Joana surgia na porta com umas canecas de café e uma bacia de roscas fritas.

Descobri na escola habilidades para Artes, gostava das aulas com trabalhos manuais, desenhos, pintura. Mas meu mundo se transformou com a leitura, aprender a ler me possibilitou vasculhar e ler todos livros da pequena biblioteca da tia Jane, quando ela morava com minha mãe e meus irmãos, nesta época eles já haviam mudado para a cidade, na metade do meu segundo ano na escola. Até o quarto ano estudei no Borges do Canto e trago dele amigos que vivem nas minhas memórias. Na mudança da minha vida escolar, para iniciar a segunda etapa do  chamado 1º grau, novos colegas e amigos chegaram e Lili nesta época começava a ficar dividida entre a vida do campo e a vida da cidade.




Um comentário:

  1. Adorei Lili, é impressionante como consegues descrever de tal forma que quase me transportei a essa data💕💕

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