sábado, 29 de outubro de 2022

Otacílio

Há muitas vantagens em se viver em uma cidade pequena. As distâncias são apenas pontos de vistas do que é longe e do que é perto, facilmente se atravessa a cidade com uma boa caminhada. As lonjuras, neste caso, são entre a cidade e as moradas localizadas no interior, no campo. Nestes pequenos municípios a vida tem outro ritmo, os vizinhos te socorrem, te auxiliam e te cuidam. Todo acontecimento inusitado se espalha logo como grande notícia. Metade das pessoas se encontram em festas familiares, porque casamentos acontecem ao longo de gerações entre famílias conhecidas, às vezes, primas casam com primos. E há, claro, as fofoqueiras de plantão, como de costume, espiando nas frestas das janelas ou disfarçadas por trás das cortinas das suas casas, quando não fofocam ali mesmo, no meio da praça em encontros furtivos. Espiam do alto das janelas os jovens retornando dos bailes do Clube Vicentino durante a madrugada.

Lili cruzava a cidade para provar as roupas na costureira. Gostava de olhar os modelos das revistas Manequim e Figurino, inspirava-se para desenhar seus próprios modelos. Desenhar era uma distração a que me dedicava durante à tarde, além de ler e estudar. Meus cadernos eram repletos de desenhos, minha preferência recaia sobre o desenho de pessoas. Minha mãe dizia que eu tinha mania de fazer desenhos de rostos, em especial, de mulheres. Não sei bem o que ela queria dizer nem o que exatamente pensava sobre minha obsessão.

De tempos em tempos, Lili rumava para lado oeste da cidade, para bem depois do cemitério. Levava tecidos, linhas e botões para dona Ursulina confeccionar as roupas planejadas nos esboços feitos em folhas arrancadas do caderno de desenho. A casa ficava para os lados da cooperativa,  junto ao bolicho do seu marido, seu Athos. Eu a conhecia por ser sogra de uma das minhas tantas tias, a Lena. A sala da casa tinha móveis escuros, paredes rosadas e uma porção de pássaros azuis de porcelana presos na parede e que me encantavam. Em um quarto junto ao espaço onde ela costurava, havia o dormitório de uma senhora muito idosa, quase centenária, tia do seu marido. Dona Ursulina dava corda para minhas invenções de estilista, fazia sugestões e ajustava a costura na prova. Na volta para casa, eu levava alguma costura pronta da minha mãe.

No bolicho, eu sempre pegava uma rapadura. Meu pai nos acostumou com as rapaduras de caldo de cana que comprava em Jaguari, pegamos muito gosto por elas. O balcão para atender os clientes era alto e atravessava toda a peça, dividindo as prateleiras das mercadorias de quem chegava para comprar, sobre ele uma balança com pesos de metal.  Comercializavam grãos à granel, depositados em tulhas e descascavam arroz para vender por quilo, além de enlatados, temperos, refrigerantes e cachaça. Encostados nas portas ou sentados em cadeiras de palha, os borrachos de sempre. Eu conhecia de longe o tio Vito, irmão do meu avô, com seus olhos azuis profundos, era  freguês habitual do bolicho. Mas havia outra figura que rondava o estabelecimento, para beber um trago oferecido pelos borrachos habituais. Ele também recolhia sobras e ganhava algo para comer. Andava pela cidade, atravessava distâncias com seu jeito de desnorteado: o Otacílio

O Otacílio vestia-se de roupas velhas, sempre desbotadas e gastas. Em volta da cabeça uma faixa clara já amarelada de sujeira e gordura. Amarrava as calças na cintura com um cordão. Lili o conhecia porque passava por ele na volta da escola. O almoço, ele tinha garantido pela dona Amélia, que morava na esquina, no lado oposto da farmácia da tia Ivoly. Ali ele esperava junto ao portão lateral pelo seu prato de comida, todo santo dia. Falava pouco, parecia constantemente perturbado, não gostava de provocações. Cada vez que alguém dizia algo a ele ou ria, saia esbravejando. Otacílio era meu relógio, eu calculava a hora que estava chegando em casa pela presença dele sentado na calçada na sombra das ameixeiras da casa à espera de um prato de comida. Dona Amélia não falhava no seu cuidado e ele parecia demonstrar um grande respeito por aquela senhora miúda, de cabelos brancos e um coque no altura do pescoço, que lhe oferecia o almoço diariamente.

Na cidade pequena as pessoas vão se encontrando nas poucas ruas que existem. Se cruzam no cemitério, na única agência bancária, na frente dos correios ou em algum mercadinho mais afastado, onde tem a farinha de milho mais saborosa ou onde tem o feijão que cozinha muito bem, como o do seu Augusto. A gente sabia que ele comprava feijão na Mata para revender e encomendava uns quilos. No meio do caminho, invariavelmente, dona Bibiana me parava na calçada e me segurava pelo braço, queria notícias da família. Ela me chamava carinhosamente de parentinha. De fato, eles tinham algum parentesco com minha mãe. Há uma corrente de afetos, de conversas, de encontros cotidianos que tornava a cidade de Lili um lugar de pequenas grandes histórias de vida. 



domingo, 2 de outubro de 2022

Dia de eleição

Lili seguia trajetos diferentes para ir à padaria. Em uma cidade pequena não existem tantos caminhos a percorrer, mas se pode andar cortando terrenos, mudando a direção por onde se vai, ainda que pelas mesmas quadras, ainda que fosse apenas trocar de calçada. A gente sempre acabava no mesmo lugar, pois todo o caminho que se tomava, tinha a praça como ponto de referência. Passar pela praça era inevitável. E ali onde a rua Carapé se encontrava com a sete de Setembro, fixada sobre pedras grandes e escuras, inscrita em letras de metal sobre uma placa de mármore, repousava e resistia a carta de Getúlio Vargas, eternamente aberta para leitura de quaisquer transeuntes. Diziam, à época, que toda cidade tinha aquela carta monumento. A nossa se localizava atrás de um banco de cimento, entre os muitos bancos que se distribuíam no contorno da praça. A famosa carta ficava na sombra rala de umas espirradeiras que na primavera se cobriam de flores cor de rosa, logo a espirradeira conhecida por ter folhas venenosas. Aquela carta, congelada no tempo e no mármore, era a despedida da nação feita pelo presidente antes do seu marcante suicídio.

Cada vez que eu lia a carta, quase a decorei, recordava da minha situação particular e dos que nasceram entre a década de 40 até meados dos anos 60 naquela terra fundada por índios e jesuítas. Na verdade, nasci em General Vargas, a cidade havia mudado de nome para homenagear o pai do Getúlio Vargas. Eram coisas da política local e que durou pelo menos umas duas décadas.. Eu não me via cidadã de uma cidade inexistente, gostava da origem jesuítica do nome do meu lugar de pertencimento. Aquele presidente me era familiar muito antes de começar minha experiência na vida urbana, ela fazia parte do meu universo, um velho conhecido por causa do seu retrato imponente pendurado na parede da sala da nossa casa no campo. Coisas políticas da minha mãe.

A fase de adolescente despertou em Lili novos interesses. Aguçou seu senso de observação para os acontecimentos da cidade: as festas, as comemorações, as rodas de conversas dos adultos, o comportamento das mulheres, o cotidiano morno e inalterável de quem vive no interior, os poucos fatos importantes da vida na minha cidade. Lili ampliou as leituras, migrou dos livros da série Vagalume para o jornal que lia no escritório do tio Ruco. Havia tardes que eu ficava em volta dele, até que me davam alguma tarefa, como organizar cronologicamente as notas fiscais e faturas de alguns estabelecimentos comerciais dos quais ele fazia a contabilidade. Passei a perceber os movimentos políticos da cidade e suas facetas acompanhando meu tio em algumas visitas com fins eleitorais, pois ele havia se candidatado para uma vaga de vereador. 

Naqueles anos finais da década de 70, pela primeira vez acompanhei minhas tias até a sessão eleitoral, testemunhando aquele grande acontecimento que eram as eleições. Elas se aprontavam cedo, dia de usar roupa de domingo. As que moravam longe faziam questão de votar no município, embora há muito tempo tivessem saído da cidade. Minha mãe deixava todo serviço da casa, porque votar era sagrado. Polemizava com minhas tias e tios, bradava suas ideias e votava cheia de convicção no que acreditava. Tia Cisa desde aquela eleição não perdeu mais seu posto de apuradora de votos. Relatava o que os eleitores escreviam nas cédulas, recados desaforados, desabafos inusitados e se divertia contando o que testemunhava nas horas intermináveis da sessão de conferência dos votos marcados nas cédulas. Ela era assim, vibrava com uma eleição. 

Lili ficava no corredor do Grupo Escolar aguardando elas votarem. Era dia movimentado, pequenas filas em frente às salas, fiscais dos dois únicos partidos na observação do processo. Muita conversa ao pé de ouvido nos grupos espalhados nas esquinas. Bandeiras e papéis dos santinhos voavam pelos pátios e se acumulavam nas sarjetas, fotos preto e branco de candidatos misturadas com algumas coloridas. Na praça, gente comentado seus votos, encontros com parentes e muita celebração. Via-se a correria de camionetes de cabo eleitorais e táxis trazendo e levando eleitores. Ao final da tarde muita gente se amontoava na porta do Clube Vicentino, onde se instalava a grande sala de apuração. As urnas de lona chegavam do interior assim como as que continham os votos das duas sessões eleitorais do centro, as do Grupo Escolar e as do Colégio São Vicente.  

Fui aos poucos entendendo a importância daquele dia em que brotava gente de todos lados, tinha-se a impressão de que população local duplicava. As pessoas chegavam vestidas de uma maneira quase solene: os homens de calça e camisa, no modo alfaiataria, retiravam educadamente seus chapéus ao entrar nas salas de votação; as mulheres reforçavam o batom nos tons mais fortes e usavam leques para aliviar o calor que se anunciava forte em meados de novembro.

Sentada no banco nas imediações da carta do Getúlio Vargas, Lili fotografava mentalmente a agitação do dia, as pessoas que passavam voltando para casa e as que aguardavam ansiosas o resultado da eleição, aglomeradas no entorno da banca de revistas na esquina da praça, de olho no anúncio que o juiz faria do resultado das eleições lá de dentro do Clube, do outro lado da rua. Algo de muito grande fazia aquele dia ter um ar de esperança. Lili não conseguia ainda compreender todo aquela demonstração de compromisso e fé do povo em depositar seu votos nas urnas, em dia que a cidade se avolumava e um espírito de celebração pairava no ar; ela não sabia bem se tanto alvoroço era sinal de mudança. Estávamos em meados dos anos 70.   


 

 




  

segunda-feira, 19 de setembro de 2022

O coreto

Toda vez que marcávamos um encontro, fosse para ver um jogo na quadra da praça, fosse para tomar um sorvete ou ficar na espreita de algum guri que a gente paquerava, era o coreto nosso ponto de referência e de encontro. Sentávamos nas escadas e ali ficávamos no final da tarde jogando conversa ao vento, comentando sobre a vida de quem passava. Às vezes nos debruçávamos sobre as muretas vazadas com suas pequenas colunas torneadas e espiávamos quem cruzava de um lado a outro da praça: os que voltavam do trabalho, os que traziam compras do mercado Encantado, as senhorinhas que se aproximavam da igreja para a missa das seis. 

Quando não tínhamos a vigilância do Tunico, até sobre as bacias em forma de conchas nós nos sentávamos, imaginando a água que deveria jorrar da boca dos leões, esculpidos logo acima daquelas grandes conchas distribuídas em volta de toda a construção. Lili não tinha memórias deste chafariz que as bocas dos leões pareciam formar, porque já não havia água correndo por ali. Na parte superior, lá no alto, as pombas faziam seus acasalamentos e ninhos de amor.

O coreto foi construído para comemorar o centenário da independência. Sua arquitetura é uma obra de arte, especialmente, pelos seus detalhes neoclássicos. Eu gostava de passar o dedo sobre os relevos, pensar sobre o desenho de suas colunas suntuosas e todo o trabalho do artista que o planejou. Contam que ele não foi apenas idealizado como um capricho do intendente da época, para enfeitar a praça, ele serviria de estrutura para uma grande caixa de água com objetivo de abastecer a cidade. Certamente o poço, logo ali entre a igreja e ele, já não comportava fornecer água à população que crescia. Sem contar, que o poço também concorria com o coreto como ponto de encontro.

Para Lili, o coreto era referência de tudo que acontecia entorno da vida dela. A posição central do coreto, de onde partiam todos os acessos calçados da praça em direção às ruas, eram raios que direcionavam a lugares importantes da cidade: a prefeitura, o cinema, o correio, o clube, a igreja, a rodoviária, o hotel e a sorveteria do seu Nelson. E a esquina da banca de revista, atraindo os compradores de cigarro, revistas, gibis e jornal. O coreto irradiava, desde sua imponência e beleza, tudo que movimentava a vida da cidade.

Duas cores eram combinadas a cada nova pintura do coreto. Um tom claro para o fundo da construção e uma cor de destaque, mais escura e vibrante, para os detalhes. Ele foi bege e marrom, ocre e azul, salmão e branco, amarelo claro e azul céu, creme e ocre. Nem sempre as cores caiam no gosto do povo. Logo se formava uma discussão nos grupos que se reuniam na esquina da banca e na do clube para debater sobre as cores escolhidas. Mas a curiosidade de Lili era sobre as cores originais, o coreto era como uma grande escultura, nada se comparava na cidade à riqueza da sua construção. Ele marcava aquela pequena cidade no mundo. Um cenário perfeito para muitos encontros românticos, namoros escondidos e palco de noitadas sem fim depois da saída dos bailes do Clube Vicentino. Em dia de céu azul e muito sol, ele se iluminava ainda mais com as flores exuberantes dos canteiros triangulares, que completavam o círculo calçado de pedras em sua volta.  

Quando sai do campo, o coreto era meu ponto de referência na cidade, tudo partia ou chegava nele. Lá estava ele, na sua beleza clássica me desafiando. Ele nos dava orgulho de viver onde vivíamos. Contemplá-lo me invadia de alegria, me ensinava a beleza, a mesma de quando eu podia ver o sol se por atrás daquela linha de cinamomos que atravessava um parte do campo das vacas mansas. As belezas tocavam Lili e provocavam sensações que o tempo ia produzindo nela enquanto crescia, e a criança dava lugar à adolescente. 


domingo, 28 de agosto de 2022

A grande perda

Agosto chegou. Metade do ano havia passado e com tantas comemorações pelo centenário do município, não tínhamos nos dado conta de que novamente voltaríamos aos longos ensaios com a banda, agora para o dia da independência. Mal folgamos nas curtas férias de inverno e lá estávamos nós formando pelotões, acertando o passo para mais um desfile. Em sala de aula preparávamos os jograis relatando o momento histórico do grito do Ipiranga, eles seriam apresentados no dia destinado à nossa turma na programação da semana da pátria no palanque construído em frente à prefeitura. 

Com toda força que o pulmão permitia cantávamos os hinos da independência e do Brasil, decorando a letra e melodia até ficarmos exaustos e entediados. Agosto sempre foi mês de clima devastador: frio, geada, calor e vento norte, e ficávamos expostos ao mal humor do tempo, enquanto nos atribuíam horas de preparação para o sete de setembro. Lili andava em círculos, envolvida com atividades da escola mas o pensamento em outro lugar. Vó Cinda tinha voltado para Santa Maria porque não andava bem. A ausência dela e a delicada situação da sua saúde desnorteava ainda mais os dias agitados de Lili, tal como aqueles primeiros ventos quentes de agosto.

Nesta época, do nada minha mãe me dava umas tarefas no período da tarde, quando eu não tinha aula de educação física, como a de comprar rendas, linhas e botões na loja da dona Nena e seu Braúlio. Era um teste de paciência aguardar dona Nena encontrar um pedido, tudo era no ritmo da sua mansidão. Seu Braúlio nem se movia da cadeira de palha entre o balcão e a grande prateleira coberta de variedades de tecidos, apenas gritava para dona Nena atender os clientes que chegavam. As encomendas da minha mãe eram para me ocupar, do contrário eu passava as tardes na casa das amigas, ou estudando ou jogando conversa fora. 

Entre as tarefas dadas pela minha mãe, teve a do dia que ela me colocou de acompanhante da Ivaldina. Uma mulher miúda, toda vestida de preto, saia longa e camisa de manga, usava a tradicional roupa de viúva, e desde que a conheci parecia estar sempre vestida com a mesma roupa. Tinha cabelo alvos, bem puxados e amarrados no alto da cabeça na forma de um coque. Já levava muitas rugas no rosto miúdo e oval, nariz adunco e foi primeira mulher com bigode que Lili conheceu. Saí com a Ivaldina enganchada no meu braço, caminhávamos devagar pela rua Brasil, a terra solta levantava pó a cada pisada. O passo dela era lento e eu tentava ir no mesmo compasso. Eu já a conhecia das suas visitas à minha avó na fazenda. Aparecia do nada, contavam que ela ia à pé, depois ficava mais de semana hospedada. Era daquelas muitas comadres que a vó Cinda fez na vida. Dizem que era muito perguntadeira, no entanto falou muito pouco durante nosso trajeto até sua casa. Embora contrariada com meu papel de acompanhante, levei a comadre Ivaldina até a porta da sua casa. Mostrou gentileza comigo, queria que eu entrasse, eu tinha a pressa de adolescente na ponta dos pés, não me permitia demoras. Apenas espiei pela porta, sobre a pequena mesa da sala, uma almofada onde ela fazia rendas de bilro. Trabalho delicado daquela mulher tão rara com bigode.

A casa da fazenda andava vazia, apenas o velho pé de camélia abundava em flores no jardim. Nos fins de semana Lili ficava algumas horas no quarto da vó Cinda. Deitava na sua cama para sentir o calor de um abraço imaginário. Eu sempre dormia nos seus braços antes de ir para cama à noite, não importava que eu já tivesse o tamanho de uma garota de doze anos. Em uma destas tardes, com o calor da primavera fazendo explodir as orquídeas do toco da laranjeira, tia Tânea e tia Ivoloy entraram apressadas abrindo as janelas do quarto, eu as tinha fechado para tirar uma soneca. Olhei para elas assustada e algo palpitou no meu peito, só pude perguntar: o que houve? Então o mundo de Lili se desmanchou entre as lágrimas e o desespero: vó Cinda se foi e eu me perdi vagando entre as peças vazias e silenciosas da casa. Minhas tias preparavam a casa para o velório. 

Setembro iniciou triste e cinzento. As festas de sete de setembro não entusiasmavam Lili. Minha mãe e minhas tias se cobriram de uma enorme tristeza. Os dias iam passando mais devagar. A primeira perda de Lili foi brutal. As tardes passaram a ser de leitura e desenhos, voltar para campo se tornou uma batalha constante com meu pai. Eu não queria passar mais os fins de semana na fazenda, havia silêncios insuportáveis na casa, no jardim, na casa do forno, na despensa, tudo se esvaziou. A cidade era agora um refúgio. 

visita da Ivaldina tinha sido um gesto de apreço pela comadre Lucinda, era para prestar suas condolências à minha mãe. 


   


domingo, 7 de agosto de 2022

Treme Terra, o propagandista do cinema

A cidade da Lili tinha encantos que iam sendo descobertos por ela como novidades típicas da vida urbana, sempre em contradição com a vida silenciosa e lenta que os tempos vividos no campo haviam impregnado na sua alma. Aos doze anos meus interesses voltavam-se para diversões que só a cidade podiam me proporcionar. Eu vivia conflitos constantes, dividida entre o campo e a cidade. Eu sabia que o campo não sairia de mim, e a cidade eu precisava ainda descobrir. 

Toda sexta-feira minha mãe arrumava sacolas com roupas para lavar com a água límpida e doce tirada de balde do poço da nossa casa lá nas terras da fazenda. Ela juntava as roupas da casa em um saco de viagem e nos carregava para rodoviária depois do almoço. No sábado era roupa estendida por todos lados, debaixo da parreira, nos arames do varal no pátio, onde podia ela distribuía as roupas para secar. Queria aproveitar o sol, o vento e água doce do poço.

A água que corria nas torneiras da casa do chalé era salobra, como a de todas as outras casas da cidade. Quando se fervia, na superfície boiava uma película embranquecida criando, ao longo do tempo, crostas brancas dentro das chaleiras. Além disso, a água salobra não ajudava o sabão fazer espuma suficiente para uma lavada eficiente de louças, menos ainda das roupas, tarefa que minha mãe se dedicava ao extremo, nossos uniformes precisavam ficar alvos para a segunda-feira. Mas a ida para o campo nas sextas-feiras à tarde me tirava de certas diversões, como ir ao cinema, ver os jogos na quadra da praça à noite, comprar sorvete de creme e morango sábado de tarde no bar do seu Nelson ao lado da rodoviária e depois conversar com as amigas nas escadas do coreto.

O cinema da cidade era mais frequentado por guris e homens, não muito recomendado para as meninas, talvez porque lá dentro ficava escuro demais quando iniciava o filme. As meninas entravam sempre acompanhadas dos pais, irmãos ou em grupo. Um vez e outra vinha uma peça de teatro para cidade e se apresentavam no palco do cinema. Então, a escola nos levava, foi assim que entrei pela primeira vez no cine teatro Carlos Gomes, situado em frente à praça, quase ao lado do correio. A cor do prédio tornava impossível não reconhecê-lo de longe, era pintado também naquela cor azul calipso dos armários da cozinha da casa da fazenda. 

Nada superava assistir uma peça de teatro ou ver um filme quando se abriam aquelas cortinas de cetim vermelho escuro. Elas iam abrindo lentamente assim que começava a tocar uma música, e nos enchia de expectativas, fosse pela peça, fosse pela sessão do filme.

O funcionário do cinema fazia todo serviço, trabalhava na bilheteria, vendia os doces, andava com a lanterna procurando poltronas vazias para nos acomodar quando as luzes se apagavam. Quando algum filme entrava em cartaz, ele saia pelas ruas da cidade carregando sobre o corpo um cavalete com cartazes de filmes pendurados. Cada vez que a gente cruzava por ele ficávamos tentando ler o nome do filme. Divulgava-os na parte da frente e nas costas, aproveitando para fazer dois anúncios ao mesmo tempo. 

João Treme Terra cruzava a praça em todas as direções, ou andava várias vezes na quadra da rodoviária, parando de vez em quando para descansar na banca de revistas, na esquina da praça, no cruzamento da rua 7 de Setembro com a General João Antônio. Treme Terra tinha este apelido porque tinha a língua presa, o que dificultava clareza na sua fala, se atrapalhava com a dificuldade que tinha para que o entendessem, se tremia todo. Era muito magro, queixo proeminente, olhos espantados. Algumas crianças temiam sua presença. Lili desde pequena se fascinava com a função que o Treme Terra cumpria. Para ela, ele era nada mais nada menos que o grande propagandista do cinema. Foi assim que o identificou aos sete anos, tentando explicar quem ele era para o irmão menor que se assustou com a sua figura.

Certo dia, Lili foi autorizada a ir ao cinema assistir um filme do Teixerinha, chamado "Ela tornou-se Freira", pois os filmes dele faziam muito sucesso. No cine teatro Carlos Gomes passavam só filmes de faroeste ou filmes do Teixerinha. A tela do cinema me fascinou do mesmo jeito que a tela da televisão em preto e branco que a vó Cinda ganhou de aniversário, pois juntas descobrimos as novelas. As telas e palcos despertaram em Lili o desejo de ser artista. A cidade então começava a me colocar no mundo de outro jeito.

sábado, 16 de julho de 2022

O centenário

Quando março chegou, logo entramos em um intenso preparo para as festividades do centenário do município no final de abril. Era o mês do santo padroeiro e também da data de emancipação da antiga vila São José, que foi rebatizada com nome do santo. Em 1876, a vila de São Vicente deixou de pertencer ao município de São Gabriel. A cidade estava movimentada e com muitas expectativas para os festejos. Lili ansiava pelo dia da festa 

Os ensaios com a banda e os das apresentações da escola para a celebração da data tomavam conta de todos. Todo dia fazíamos trajetos diferentes acompanhando o compasso da banda. Percorríamos toda a chamada avenida Cipriano D'Avila até alcançar o Alto da Bronze, campo de futebol bem em frente ao hospital, e retornávamos pela 7 de setembro. Muita gente saía para fora das suas casas para nos saudar. Lili se entusiasmava com tanta preparação, pois as festividades eram anunciadas para marcar o dia histórico, por esta razão nossa dedicação nos ensaios era enorme e muito cobrada, não podíamos fazer feio. Lá íamos nós aperfeiçoando o ritmo da marcha e o alinhamento dos pelotões. O Negro Vieira, famoso entregador de jornal e mercadorias, já nos aguardava nas imediações da rodoviária, onde costumava passar grande parte do seu tempo. Dali para frente ele nos acompanhava, e ao lado da banda, como se também estivesse nos guiando, marchava forte e concentrado, até chegarmos de volta ao portão da escola.

Sob os cuidados especiais do Tunico, o jardineiro mais boa gente e educado daquelas paragens, tudo estava impecável na praça central, tal como as camisas de tergal que ele usava e lhe davam tanta elegância. Os canteiros no entorno do coreto ja estavam cobertos de amor-perfeito, cada dia com mais flores, mostrando que à medida que a temperatura diminuía, sentia-se os sinais da mudança do clima. Estávamos chegando ao outono, estação que eles desabrocham com vivacidade. As roseiras podadas e vigorosas realçavam a pintura nova do coreto. Os ares da cidade eram de glória. Todos andavam ansiosos a espera da visita do governador que havia anunciado sua presença nas comemorações. 

Em casa nos ocupamos todos com os preparativos. Tia Jane assoberbada com as atividades da escola, na expectativa da organização do desfile, que deveria sair sem atropelos e imprevistos. Minha mãe mandou fazer uniforme novo, renovar os aventais do Borges do Canto para meus irmãos, uma nova saia e blusa pra mim. Tudo com monogramas da escola bordados por ela na cor azul-marinho. Meu irmão menor ganhou um papel para representar as profissões importantes no desfile do dia 29 de abril: uniformizou-se de padeiro. Lili havia sido escolhida como representante da turma para concorrer, por meio de votos, à rainha da escola do ano do centenário. E isso fez o sexto ano ser inesquecível.

Os dias eram aulas nos primeiros períodos e depois ensaio com a banda até a hora do almoço. Pela tarde minha ocupação era pedir votos para os vizinhos, parentes e conhecidos. Vó Cinda estava de volta na casa da fazenda, e me comprou uma boa quantidade de votos. Eu me sentia vibrante com ela por perto. Planejava estar presente no ato de comemorativo com o governador, ia usar seu terninho preto e a blusa com gola de renda guipir branca. Sua roupa mais chique, usava sempre em dias importantes. 

O clima estava agradável e o sol radiante. Nas primeiras horas da manhã já estávamos organizando nossas filas. Os pelotões temáticos contavam a história do municipio, suas origens jesuítica e missioneira. As professoras corriam entre as fileiras de cada ano escolar, revisando uniforme, ajustando vestimentas e sempre nos lembrando do bom comportamento durante a passagem em frente ao palanque montado nas escadarias da igreja matriz para receber o governador.

Aquela manhã de 29 de abril de 1976 foi longa. Iniciamos nossa caminhada para nos posicionarmos e seguirmos no acompanhamento dado pelo ritmo da banda que, primeiro puxou os pelotões do Grupo Escolar Borges do Canto, depois as demais escolas. Somaram-se ainda as escolas do interior do municipio e as que ficavam nos arrabaldes da cidade. Naquele dia a população cresceu lotando a praça e as calçadas no entorno. A espera foi longa, ficamos horas no mesmo lugar sem poder sair, para não desmanchar a formação do pelotão e desorganizar o desfile. Quando não se podia mais segurar, íamos rapidamente ao banheiro da casa paroquial. Os pequenos pareciam inquietos e cansados. E nada do governador

Lili ficou na ponta dos pés sem sair da fila para melhorar o ângulo de visão e ver que cara tinha o governador. No alto do tablado improvisado sobre as escadas da igreja, um palanque oficial, com as bandeiras do município, do estado e do Brasil. Logo aquele pequeno espaço se avolumou de autoridades. Bem passado do meio-dia, iniciou-se uma chuva de luzes dos flashes das câmaras fotográficas do seu Olívio e do Arvei, registravam o momento histórico. O governador era alto, dali onde Lili estava podia ver sua careca reluzente e o terno azul marinho que usava. Nada entendeu do discurso do governador Synval Guazelli, pois como para todos ali, o cansaço se abatia sobre ela e toda a gurizada. O pessoal da banda resistia, apoiados nos instrumentos. 

O povo se amontoava para além das calçadas invadindo o espaço dos canteiros da avenida, com seus pés de extremosas ainda em fase de crescimento. Foram muitas horas de espera e de ansiedade por aquele famoso ato comemorativo. Vi a vó Cinda acompanhada das minhas tias no fio da calçada, bem posicionada para assistir a cerimônia, claro impecável e altiva no seu terninho preto e cabelos bem afofados, no estilo da moda dos penteados daqueles anos. 

A fome chegava com passar das horas. Meu irmão menor, que levava um pão d água da padaria do seu Darci na sua caracterização de padeiro, já havia devorado o pão no desespero da fome. Passou em frente ao governador um padeiro sem pão na cesta. O dia de festa havido sido longo e intenso. O governador fez sua passagem relâmpago na cidade. Lili se decepcionou com a brevidade daquele festejo, afinal eram cem anos da sua cidade, era a festa do centenário. Também não alcançou votos para ser a rainha da escola do ano do centenário, mas sabia que o dia tinha sido marcado na sua memória, afinal foi o grande momento histórico dos seus doze anos.

domingo, 3 de julho de 2022

Quando a banda passava

A virada para ano de 1976 prenunciava turbulências na vida de Lili. A primeira menstruação caiu como um grande incômodo e veio com ela os altos e baixos do humor. Sentia-se ainda uma menina do campo, mas os seios cresceram rapidamente e ela percebia estar entrando de fato em uma nova fase, na qual sequer sabia como administrar. 

O primeiro dia do ano foi assustador, vó Cinda não estava bem, há tempos vinha com desconfortos abdominais. Eu a achava muito pálida e notava que andava muito cansada. Lá se foi para consultar um médico mais especializado e eu fiquei com um aperto no coração. Antes de iniciar o ano na escola, ela pediu que me levassem à Santa Maria porque sentia saudades de mim. Estava melhor, mas permanecia desde janeiro na casa da tia Betty sob seus cuidados. 

A entrada no sexto ano em março, estava como a vida de Lili, tumultuada: minha amiga Márcia, companheira de fazer os trabalhos escolares e com quem eu brincava de professora, foi embora. Chegaram na nossa turma, a Isabel e a Cristina vindas de outras cidades. Seguíamos só as meninas na sala de aula. Novos professores, muitas disciplinas e a pasta da escola pesada de cadernos. Usei todos papéis de presente guardados pela minha mãe para fazer capas nos cadernos do sexto ano, uma estampa diferente para identificar cada matéria. 

A educação física agora era feita na quadra da praça, pois começamos a aprender handebol, abaixo de instruções dadas aos gritos pela professora Amelinha, o diminutivo do nome não condizia com o jeito duro com o qual nos tratava. Para montar o time da turma ganhamos a força e o impulso da Nádia, que eu já conhecia porque ela era filha da Gessi, a senhora que trabalhava na casa da nossa vizinha, dona Lalá. Ninguém se atrevia com a Nádia, ela era furiosa e não deixava ninguém ser preconceituoso por causa da sua pele negra. Tornou-se a a fortaleza da nossa turma. O jogo na quadra era um festival de unhadas, arranhões e puxada de cabelo, a defesa era implacável nos seus métodos. Quando eu estava disposta ia para a goleira e voltava para casa cheia de machucados de tanta bolada, colocava toda minha pouca força em enfrentar as bolas certeiras da Nádia.     

A maior das novidades é que começamos cedo os ensaios com a banda, logo estaríamos desfilando no aniversário da cidade. Participar da turma da banda era privilégio para os meninos, o grupo era formado por alunos de várias turmas e só eles tocavam na banda. As meninas entravam para guiar a banda pelas ruas da cidades como balizas. Nos ensaios para os desfiles comemorativos marchávamos todos os dias puxados pela banda, fazíamos várias voltas nas imediações da escola, descendo ou subindo as ruas próximas, e passando pelo nosso antigo colégio Borges do Canto. Também na hora cívica a banda se encarregava de tocar o hino. Silêncio no pátio, algumas risadinhas e o olho vigilante da dona Maria Cony nos observando.

Todo mundo tirava um minuto do seu tempo para ir para janela ou para a porta das casas assistir a banda passar. Até a desnorteada da Manuelinha, que dormia no banco da praça, ajeitava suas inúmeras saias sobrepostas, apoiava-se no seu cajado feito de um galho de árvore e apreciava o som harmônico das batidas dos instrumentos. Com certeza, a música trazia paz para Manuelinha, sempre tão agitada nos seus devaneios. Lili queria mesmo era ser baliza, mas era tarefa para as meninas maiores que estavam nas séries finais do primeiro grau ou já no segundo grau. Moças mais altas e magras, dignas de estarem à frente da nossa banda. Além disso, minha mãe não aprovava meus ímpetos de querer me exibir na frente da banda comandada pelo mestre Heitor. Meu desejo de querer estar na banda foi passando, tal como ela passava pelas ruas da cidade toda vez que havia algo a ser celebrado.


Carapé

O senso de localização de quem vive em uma cidade pequena segue indicações personalizadas, as zonas urbanas não são identificadas pelos pont...