sábado, 22 de abril de 2023

A cor da pele

Catarina, filha do seu Nelson, sempre andava pela porta do bar do pai, conversando com os hóspedes do hotel, que ficava na parte dos fundos da grande casa onde a família morava e trabalhava, atendendo no bar localizado na parte da frente. A casa ficava situada estrategicamente ao lado da rodoviária, era um entra e sai de gente no local, motoristas e passageiros em trânsito fazendo seus lanches e gente necessitada de ir ao banheiro. Em frente à praça, o casarão verde desbotado funcionava até tarde da noite. 

Naquele lugar, onde se mesclavam espaços entre o bar, a padaria e o hotel, havia o melhor sorvete da cidade, talvez por ser o único fabricado ali mesmo. Três sabores principais eram preparados pelo movimento sincronizado das pás de metal de uma máquina de fabricar sorvetes. Quando não dava tempo de tomar um sorvete, apressada para pegar o ônibus que a deixaria na parada da Divisa, em frente à fazenda, Lili comprava um picolé de creme holandês, seu preferido. Havia diversos sabores de picolé, alguns de puro suco congelado, outros cremosos, a base de leite. 

Sob aquelas tampas de metal do balcão estavam armazenados os cremes gelados dos sorvetes de morango, chocolate e baunilha, servidos fartamente em casquinhas crocantes, feitas de uma massa doce e porosa. Nada era mais saboroso para Lili do que aquele sorvete servido pela Catarina, acompanhado de um sorriso simpático e amoroso que ela nos dava como que para retribuir a preferência pelo sorvete do estabelecimento do seu pai,  e que  soava como um certo perdão pelo momento cruel da vacina que nos aplicava, pois ela trabalhava também como enfermeira no posto de saúde. Catarina tinha a cor e a doçura de um sorvete de chocolate.

Pessoas como a Catarina eram a própria resistência, trabalhavam muito, ela teve uma vida sofrida pelas mazelas de uma diabetes. Lili fazia mentalmente uma lista, relacionando a vida de certas mulheres como a de Catarina. Costumava observá-las, trabalhavam arduamente em certos circuitos familiares, outras vezes, porque sabia que em muitas ocasiões, elas passavam por invisíveis, se quer as notavam. A cor da pele as definiam, mas também definiam seu lugar naquele mundinho de uma pequena cidade do interior. 

Uma delas, Lili via todo dia. Gessi trabalhava com dona Lalá, nossa vizinha. Muito cedo da manhã e no final da tarde, de balde, vassoura e pano em mãos limpava o açougue do seu Noé. Um lugar que exigia higiene e limpeza constantes. Ela cuidava da casa, da comida e seguidamente eu podia vê-la encerrando as vacas de leite que seu Noé criava no campinho nos fundos de casa. Gessi amargurava a vida na bebida, dizem. Criou outra fortaleza, que era a Nádia, nossa colega do sexto ano. Uma potência de força física e raiva do mundo, que davam a ela uma resistência inabalável.

Ninguém se comparava em bravura à Neda. O capricho em pessoa, com certeza, razão de ser da sua profissão, lavadeira de roupas finas. Dedicava-se a alvejar toalhas de mesa, conjuntos de lençóis, guardanapos bordados e tantas outras peças de enxoval de muitas senhoras. A risada era solta e gargalhava nas alturas, no entanto a fúria se instalava naquele corpo como um furacão se acaso fosse discriminada ou ofendida. Senti a desconfiança da Neda no dia em que ousei, como pirralha metida que eu era, dizer a ela que precisava cuidar bem  do meu lençol bordado, feito com todo carinho pela minha mãe, parte do que eu havia levado comigo quando fui morar na cidade. Passei um bom tempo sentindo um grande mal estar pela ousadia de ter questionado o capricho da Neda.

Guiomar desfilava elegância com suas saias de cós alto e camisas bem ajustadas ao corpo bem desenhado. Ela deixava no ar a beleza das suas curvas e o sorriso solto com que saudava a todos. Ria com facilidade, era espirituosa e dava impressão de que nada a abalava. Casada com Tunico, o guarda e jardineiro da praça, impressionavam ambos pela simpatia. Dançavam lindamente nos bailes pelos clubes da cidade. 

A cor da pele marcava a força e a beleza dessas mulheres que passavam por mim, que cruzavam por mim. Lili levou tempo para compreender o que custava a elas se fazerem presentes, defendendo a pele da dor, da desconfiança, da humilhação, da discriminação. Eu via beleza e via coragem, mas não podia sentir por elas, não tinha a mesma cor da sua pele.

domingo, 2 de abril de 2023

Um ano de findar etapas

Nas horas em que se distraía, vagando por pensamentos absortos, sem endereço certo, Lili costumava fixar seu olhar em algo inusitado. Observava a entrada e saída das abelhas sem ferrão que viviam em um pequeno buraco no tronco do cinamomo, aquele do banco de ferro onde o Vergilino sentava para tomar chimarrão, localizado bem em frente à janela do quarto dos arreios. As abelhas iam e vinham, talvez seduzidas pelo perfume das flores da primavera, localizada logo ao lado da cerca da lateral da casa, de onde se via o campo da ladeira. Eram inofensivas, então Lili podia se aproximar e analisar seu vai e vem para entrar no pequeno orifício da sua colmeia, disfarçado entre as cascas do tronco da árvore.

Os dias andavam tristes na fazenda, até insuportáveis. A casa estava silenciosa,  havia pouca gente da família, alguns homens no galpão e, claro, o Vergilino que não nos deixava sozinhas. Desde que a vó Cinda faleceu, eu costumava acompanhar minhas tias cada vez que elas vinham passar alguns dias na casa da fazenda. A Maria também seguia por aqui, mas como eu, parecia sem rumo, sem ter quem nos guiasse. A tristeza havia piorado muito com a perda inesperada do tio Ruco. Eu fiquei diminuída, meus grandes afetos partiram cedo demais. Cortaram-se laços de modo muito abrupto na vida de Lili e isso doía imensamente dentro dela.  

Naquele início de março começávamos nossa jornada para finalizar o ensino fundamental e Lili vivia grandes expectativas. Mas o acidente do tio Ruco nos pegou de surpresa, minha mãe chorava pelos cantos sem esperança. Eu só tinha o olhar perdido, sentava debaixo de um árvore na praça antes de voltar para casa, me dava uns minutos de silêncio, era minha forma de rezar, falava com Deus, porque tio Ruco importava demais na minha vida. Mas ele não resistiu, e o ano começava assim, muito dolorido.

A vida seguia seu curso, era ano de formatura, mais uma etapa se encerraria na nossa vida escolar. Aos poucos a rotina da escola foi me recuperando da tristeza. A novidade da escola neste ano era a chegada de alunos de Jaguari para cursar o segundo grau. Vinham de ônibus e chamavam a atenção. As meninas se alvoroçaram com os rapazes bonitos e mais maduros e a paquera estava liberada, embora fosse uma ilusão, pois não passávamos de umas pirralhas para os guris jaguarienses. 

O colégio se encheu de gente, à tarde era um agito nos corredores e nos pátios. O bar do Faete na esquina era uma atração. Sentadas nos degraus da entrada do colégio, a gente via a Catarina pular uma janela do prédio da esquina, e a fofoca rolava solta entre as meninas. A suspeita é de aquela era a janela do quarto do Lafayete, o dono do bar. Catarina era filha do sapateiro, nossos vizinhos que moravam de outro lado da rua, em frente a nossa casa. Tinha fama de espevitada e danada, e a alegria dela nos fazia bem.

Findada a jornada diária escolar, cruzávamos a praça para uma conversa nas escadarias do coreto ou rumávamos ao clube para uma partida de ping pong. Ali se reuniam os "feras" na arte de jogar ping pong, o Ciro, o Titão, o Vito. Na maioria das vezes, as gurias se reservavam ao papel de observadoras, mas a gente também gostava de jogar partidas entre nós. Invariavelmente eu levava uma "capinada" da minha mãe porque chegava bem depois da aula em casa, pouco antes do horário sagrado da janta. Lili ensaiava ares de uma liberdade em que se auto vigiava, o que dava a ela a sensação de que disfrutar de certas alegrias, aliviava sobremaneira as perdas recentes, que iam se tornando uma saudade imensa, mas gratificante por ter tido aquelas pessoas inigualáveis na sua vida. E assim seria, um ano de findar etapas.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

O povo e o interior

A primeira vez que Lili ouviu a palavra povo foi quando vô Joãozinho se referiu à cidade ao comentar sobre as compras de produtos que necessitavam em casa e a chácara não fornecia para a família, pois o auto sustento do qual viviam praticamente evitava idas seguidas à área urbana, tudo o que a família consumia era produzido nas terras no entorno da casa. O que ele mais aguardava das compras vindas da cidade eram a erva, para fazer o mate de todos os dias, e o fumo que ele desfiava com a ponta dos dedos até que virasse um punhado de fios muito finos. O passo seguinte era colocar o fumo desfiado sobre a palha já cortada e enrolar o seu palheiro. Ele fumava enquanto ficava absorto em pensamentos. Anos depois, pelos reveses da vida e do destino, ele se mudou para o povo. 

A cidade havia surgido de um pequeno aldeamento. Tal como Lili aprendeu na escola, na praça central iniciou-se um povoamento com gentios vindos das Reduções Jesuíticas dos Sete Povos das Missões. A velha estância de gado dos jesuítas espanhóis nada mais era do que um agrupamento de índios guaranis que ali cumpriam com o papel de cuidar do gado e dos cavalos. Depois da destruição das Reduções, e findadas as batalhas entre Espanha e Portugal, as antigas terras da estância começaram a receber gado de militares à serviço de autoridades portuguesas. Também vieram portugueses que requeriam suas sesmarias de terras recebidas pelos serviços ao império no controle da fronteira. Muitos outros chegaram nos anos seguintes, exploradores e criadores de gado que viam naquela terra oportunidades para montar seus negócios como o da retirada de madeira no chamado rincão de São Xavier e outros que se dedicaram à pecuária nos bons campos nativos contornados pelo rio Ibicuí e o Jaguari. 

Nosso povoado tem ainda sua origem guarani. quando foram os índios que primeiro se instalaram nas terras da antiga estância. Se realocaram nelas depois que definitivamente a estância de São Vicente saiu do domínio espanhol e foi dando origem, sob o império português, à Vila São José, liderados pelo valente chefe Carapé. Mais tarde, as famílias dos sesmeiros se apossaram de suas terras, alguns aventureiros chegaram para iniciar seus negócios. Aportou na vila, o padre espanhol Boaventura Garcia para assumir como pároco aa igreja matriz São Vicente Ferrer. Contam que antes dessa igreja, duas outras haviam sido erguidas durante o período da Estância Jesuítica em Cavajuretã e Timbaúva  

O povo, nasceu como vila São José e foi crescendo, ergueu-se a primeira igreja e se construíram as primeiras casas. Dizem que a população triplicou com a chegada dos imigrantes, como meus bisavós, pais do vô Joaozinho, para ocupar as terras antes vigiadas pela guarda nacional, as terras do rei. Minha mãe comentava sobre o campo reiuno, ela apontava o lugar onde o gado, sem marca e identificação, formava o rebanho do império, em seguida que passávamos de charrete pela velha estrada intermunicipal, depois da ponte do Salsinho. Tudo o que mais encantava Lili era ver aquele campo todo amarelo, coberto por uma grande colcha bordada com flores de maria mole. 

A vila, em 1876, se transformou em município, e seguia sendo o povo para quem vivia nos fundos de campo, em rincões perdidos e em moradias espalhadas pelo interior. Para qualquer um que vivia em propriedades rurais, em especial em pequenas chácaras, ir ao povo significava dificuldades em se deslocar. O povo, bem mais do que lugar para passear tinha as condições para se usufruir de certos serviços e se cumprir com certos deveres civis, como votar, fazer consultas, compras de roupas, móveis, objetos para casa, entre tantas coisas. No povo a vida era sentida como civilizada, uma ida para a cidade se definia por ocasiões de grande importância. O povo representada o lugar do progresso. 

Mas se deslocar do campo para o povo era tarefa difícil. Estradinhas precárias, muita pedra, muita areia ou muito barro depois das chuvaradas e das enchentes. O transporte era de charrete ou à cavalo. Em alguns locais tinha-se acesso pelos ônibus que realizavam suas rotas intermunicipais cruzando pela cidade, assim quem morava mais próximo das estradas conseguia usá-los como transporte: São Rafael, Loreto, Salso, Divisa, Palma, Cavajuretã, Vila Clara. 

Meu pai costuma vir ao povo pelo menos uma vez na semana na charrete amarela, trazia mantimentos produzidos em casa: laranja, bergamotas, ovos, mandioca, batata doce, leite.  Haviam muitas charretes, um transporte bem comum pelas ruas da cidade, os pobres cavalos precisavam usar ferraduras para aguentar o tranco das distâncias percorridas entre o interior e o povo,  sem contar que ainda andavam sobre as pedras irregulares do calçamento. 

 Cedo da manhã chegavam as pessoas do interior e se acomodavam na área externa do posto de saúde esperando a hora de abrir. A gente sabia da rotina ao avistar a Vanilda passar do outro lado da calçada, trabalhava todo dia no posto, chegava nas primeiras horas da manhã, organizava as filas e as consultas. Eu conhecia bem o cotidiano dela porque morávamos quase em frente ao posto de saúde. Uma vinda ao povo para quem percorria longas distâncias desde suas moradias no campo se pautava por motivos inadiáveis, raramente era por causa de visitas sociais, as pessoas se deslocavam mesmo por necessidades, por urgências como um velório ou uma consulta médica. 

Eu observava do portão de casa as charretes estacionadas na sombra do terreno da esquina. Se olhasse para outra direção via alguma charrete em frente à farmácia da tia Ivoloy. Quase sempre tinha alguém cuidando do veículo, aguardando quem ia comprar um remédio. Lá pela metade da manhã chegava a charrete do seu Ernesto, ele vinha oferecer as verduras de sua horta para minha tia, freguesa habitual do verdureiro mais conhecido da cidade. Ele vinha religiosamente no povo vender seus produtos, e tinha freguesas certas como ela, percorria muitas casas ao longo da manhã. Era um homem de ares germânicos, tez avermelhada, fosse por efeito dos dias de frio ou pelos de sol muito quente. De tanto pegar o gelo das madrugadas teve um espasmo que o deixou com o pescoço torto. Levou uma vida com o pescoço quase deitado sobre um dos seus ombros.

O povo a que meu avô mandava seus filhos entregar leite e comprar fumo de rolo e erva mate, era um outro mundo para quem vivia no campo. Dois modos de viver o tempo. Para quem vinha do interior, atravessando trilhas no campo, cortando caminho, abrindo uma quantidade de porteiras, o povo deslumbrava pelo seu progresso, pelas novidades no comércio, pelas notícias que corriam de boca em boca nas esquinas, pelas conversas rápidas com conhecidos nos bancos da praça. O ritmo de quem vinha do interior se alimentava do que o povo oferecia de novidades e de oportunidades. A escola era uma delas já as que existiam no interior ficam muito distantes uma das outras. Tivemos de nos deslocar do interior, do campo largo da liberdade, para ter aquilo que o povo tinha a nos oferecer. 

   


sábado, 14 de janeiro de 2023

A pediatra

Lili saía apressada da casa da Dona Dinorá, embora ela fosse a vizinha mais próxima, com quem dividíamos a cerca do jardim. Do nosso lado um pé de roseiras de cachopas frondosas, na cor de um rosa delicado; do lado dela, dois pés de palmeiras com uns cactus que desciam pelo tronco e floriam em setembro, flores escarlates grandes e esplendorosas. Já era próximo do meio-dia, Lili buscava a receita de um bolo de chocolate chamado Nega Maluca. Dona Dinorá dizia que era muito saboroso e que havia copiado a receita de um programa de rádio. Eu tinha em mim todo um gosto por aprender novidades em tudo, e muito especialmente, na culinária. Mas minha pressa era porque precisava tomar banho, almoçar e estar na escola no início da tarde. 

Eu sempre chegava mais cedo e me reunia com as colegas. Sentava em um dos degraus da escada da entrada principal da escola, ali conversávamos antes da sirene tocar. Lili alimentava as ideias com as narrativas dos namoros das colegas para elaborar a trama das novelas que vinha escrevendo nas folhas de um caderno velho do ano anterior, inspirada nas fotonovelas da revista Grande Hotel.

O banho precisava ser rápido porque a comida  estava na mesa. Minha mãe era pontual, minutos antes de dar meio-dia no relógio despertador, acomodado em uma das prateleiras laterais do armário aéreo, ela já estava gritando pelos guris, sempre atrasados, envolvidos com alguma brincadeira no pátio, em geral, com o jogo de bolita no terreno na lateral da casa. 

O Lindolfo já estava nos fundos da cozinha esperando as sobras de pão e de gordura que minha mãe juntava para ele. Costumava recorrer a vizinhança buscando o que restava da comida do dia, mais ainda quando não encontrava um pátio para capinar. Era um homem baixinho, vestido com uma calça surrada, enrolada na altura do tornozelo e apertada na cintura com um pedaço de cinto. Usava um chinelo gasto pelo tempo, um chapéu de feltro amassado cheio de furos e uma camisa encardida, às vezes, andava com um casaco muito maior que seu corpo miúdo. Tinha fama de invocado e muitos o chamavam de "taruginho". Vivia de pequenos serviços nos pátios das casas, e tudo que lhe davam era para alimentar os filhos.

Na volta da escola, senti uma dor forte na garganta, febre e cansaço. Lili tinha histórico de doenças típicas da infância: sarampo, catapora, rubéola. Cada vez que alguém aparecia na escola com sintomas de algumas delas, sinal de que também tinham se instalado no corpo de Lili. Eu não era frágil nem magra, atraia vírus só de saber que eles andavam soltos no ar, em surtos que apareciam de tempos em tempos.  

No menor sinal de desconforto, minha mãe era muito precavida, cruzava a rua e nos levava no posto de saúde. Cedo da manhã lá estávamos eu e ela sentadas na sala de espera. Era um espaço amplo com bancos de madeira encostados contra as paredes. O chão com ladrilhos geométricos me deixava tonta cada vez que me fixava nas formas, enjoada com todo aquele mal estar, a vontade de fugir dali rondava meus pensamentos febris. Lili não temia os médicos, nem a ameaça da injeção. A mão de meu pai e a da tia Ivoly costumavam ser leves quando aplicavam injeções, e eu confiava neles. 

Entrei meio acanhada na sala bem iluminada da médica, predominava o ambiente claro, dava sensação de que estava tudo muito limpo e higienizado. A médica levantou a cabeça e nos cumprimentou com a cordialidade de sempre, pois já nos conhecíamos. Meu pai cuidava do gado da chácara do marido dela, o médico de todos os partos da minha mãe. Tinha cabelos castanhos claros quase na altura do ombro, levantou calmamente e veio em minha direção. Antes de me examinar, com o seu sorriso contido e a voz serena me olhou e perguntou: o que houve com esta moça? Bastou para que eu desfilasse uma quantidade de sintomas, descrevia-os com detalhes, eu era boa nisso. Ela simpatizava com a minha destreza em falar e explicar. Eu estava com caxumba, seriam dias em casa para não transmitir para os colegas. Meus irmãos, por outro lado, certamente não escapariam da quarentena.  

Sempre que ficávamos amolados, lá ia minha mãe no posto ou no consultório na casa da médica. Era atravessar a praça e a casa dela estava ali, vizinha da casa paroquial e da igreja. Todo final de tarde era possível vê-la, religiosamente, após a última batida do sino, entrando na igreja. Para consultar na casa, era só entrar por um portão baixinho de ferro, contornando o jardim por uma calçadinha de pedra e tocar a campainha, caso a sala de espera já não estivesse aberta.

A médica cuidava de todos nós, sua especialidade era pediatria. Naquelas salas de espera do posto ou da casa dela haviam muitas mães e crianças. Mas também muitas mulheres sozinhas, consultando para assuntos da intimidade feminina. Para esses assuntos, também minha mãe recorria as prescrições da médica, até mesmo quando menstruei pela primeira vez ela foi se instruir com a médica, tal era o grau de confiança depositado na Dr.ª Daily, a pediatra que cuidava, principalmente, da saúde de toda criançada da cidade.   

sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

Os bailes da vida de uma adolescente

Lili iniciava um ano cabalístico, os treze anos tinham chegado com mudanças no corpo e muita inquietude sobre si mesma e o mundo. O mau humor aparecia do nada, vivia estados de rebeldia de quem já sentia não se encaixar nos sonhos da maioria das meninas. Tinha o desejo pela escrita e a insatisfação típica da adolescência. 

Eu havia crescido muito, naquele momento inclusive aparentava ser mais alta que as outras colegas, como se de repente eu fosse uma mulher jovem. Meus seios ficaram grandes, toda roupa que eu vestia a percepção era de não me caia bem. Finalmente, minha mãe deixou de interferir no corte do meu cabelo, pude deixá-los crescer. A testa reluzia de oleosidade, coberta de espinhas e cravos, o que me impedia de usar franja porque o cabelo oleoso fazia com que ela grudasse na testa. Em vão, eu tentava controlar a gordura da pele com rodelas de pepino e lavava o cabelo com todo tipo de receita caseira sugerida nas revistas Carinho ou Capricho. 

Todo o descompasso da vida de adolescente me produzia uma autoimagem bem distorcida, a de que eu era uma guria feia e desinteressante. Mas, em fevereiro daquele ano, eu tinha feito algo novo e diferente, foi minha estreia nos bailes. Fiz meu primeiro carnaval no Clube Caixeiral, em Santa Maria. Cuidada e vigiada pelos meus tios, acompanhei minhas primas e amigas nos dias de carnaval. Quando subi as escadas do Caixeiral fiquei fascinada com as colunas até o teto, moldadas com arabescos clássicos, contornando as escadas que davam acesso àquele enorme salão, ventilado pelas inúmeras janelas altas do lado esquerdo e direito. Eu então elegi o Caixeiral o lugar mais bonito que até então eu conhecia  

Descobri a diversão de pular, de fazer trenzinho, de circular pelo salão, de subir no palco onde estava a banda e bailar entusiasmada. Uma Lili divertida surgia e se deixava levar pela festa daqueles dias de férias na casa da tia Betty e do tio Cláudio. Naquele carnaval encontrei meu primeiro par de baile, o Chiquinho, com quem pulei todo carnaval e dividia todas as noites um prato de batata frita e refrigerante. O Clube Caixeiral e Santa Maria tinham entrado de maneira significativa na minha vida.

Aquele carnaval me incentivou a participar de festas. Quando meu pai autorizava, eu ficava fim de semana na cidade, na casa da minha vó Xiruca ou na casa da tia Tânea, para poder ir  aos saraus no Clube Vicentino nas tardes de domingo. Eu sabia das histórias dos carnavais no Clube Vicentino durante a juventude da minha mãe. Ela contava detalhes das fantasias, de como a vó Cinda gostava de colaborar na feitura das fantasias e de vê-las fantasiadas, ela e minhas tias. 

Naquela época o carnaval da minha cidade andava decaído, os foliões haviam esmorecido, pairava no ar falta de entusiasmo. Muita gente preferia o carnaval de Jaguari no balneário. O Clube Vicentino era nosso refúgio para jogar ping pong, fazer um lanche na copa, sentar no pátio interno para jogar conversa fora com os amigos. Da área dos fundos ouvia-se os gritos dos homens que jogavam bocha enquanto bebiam cerveja. Tardes de sábado e domingo eram dias de encontro marcado.

Sem sarau, sem baile, muita gente rumava para o Clube União, um quadra abaixo do Clube Vicentino, Ambos ocupavam esquinas importantes, se destacavam: um pintado de branco e outro de verde. Um era dos brancos e o outro, como todos chamavam "dos morenos".  Em casa eu ouvia; "mas no clube dos morenos?" Para Lili nada mudava, as boates no Clube União faziam parte do roteiro, sem restrições.   

A grande festa do Clube Vicentino sempre foi o baile dos Kerbs. Durante três dias bailávamos ao som das bandinhas alemãs. Muita cerveja distribuída no meio do salão, como multa aos que eram escolhidos para dançar com o rei e a rainha. Lili se envolvia com os preparos, dias de planejamento com as amigas sobre as roupas típicas que desenhávamos, a prova nas costureiras, os encontros na casa de alguém antes do baile e a entrada coletiva e triunfal no salão do clube. Na madrugada, uma volta na praça, uma lavada na cabeça na torneira atrás do banco em frente ao coreto, para eliminar o cheiro de suor misturado com o de cerveja e muitas risadas. A adolescência era assim, meio ranço, meio revolta e muita amizade e festa. A vida na adolescência era como a espera por um baile: expectativa constante

domingo, 20 de novembro de 2022

A tormenta


O ano começou com ares de tristeza. Meu avô Joãozinho havia falecido em fevereiro, depois de dias internado em um hospital em São Francisco. Ele andava com olhar perdido, seus belos olhos azuis ficaram opacos e expressavam um desalento que não se conseguia saber qual era a razão. O coração não resistiu.

Em março iniciamos a sétima série, com mudanças importantes, passamos ao outro corredor da escola, na ala dos maiores e a turma agora era mesclada, com meninas e meninos. A sala era grande e nos acomodamos agrupados. Quase todos os meninos, a exceção do Fabrício, amontoaram-se no fundo da sala, na chamada cozinha. As meninas se localizaram nas primeiras classe de cada fila. Eu escolhi a classe logo atrás da do Fabrício, na esperança que ele me auxiliasse em matemática, além das ajudas que a Jussi costumava me dar. Eles eram bons nas contas, aliás eles gostavam das aulas de matemática e de resolver aquelas infindáveis equações. 

Lili se garantia no inglês decorando os textos do livro "New English " que o professor Eugênio adotou para as aulas. Também gostava de ouvir o professor Darci divagando na aula de história, falando do Império e da República. E claro, a aula de português era minha preferida, especialmente se precisasse fazer redação. As longas unhas da professora Conceição se destacavam cada vez que ela gesticulava enquanto explicava uma regra gramatical, enquanto eu tentava acompanhar o seu raciocínio. De vez em quando, lá ia o Vito para secretaria levar uma chamada do diretor. Ele tinha as respostas na ponta da língua e bom humor para burlar dos colegas e dos professores. Era outro bom na matemática.

Em meados de Outubro, já estávamos na expectativa de aprovar de ano, fazendo as contas para ver se as notas somadas alcançavam a média final para passar de ano. Mas aquele foi um Outubro diferente, fomos pegos por uma tormenta violenta. 

Minha mãe andava por toda casa trancando portas e janelas e, a cada tanto, revisava se estava tudo bem fechado. Dava um espiada pela janela do quarto e se desesperava só de pensar nos animais na fazenda e no pai. Nós pulávamos nas camas, ansiosos e assustados, estávamos apenas com a luz das velas. Tia Jane havia voltado da escola mais cedo, pois havia faltado luz em toda cidade. Nereu, um veterinário amigo dela, veio acompanhando. Eles jantaram e ficamos todos na expectativa da tormenta diminuir, assim que calmou o vento, veio muita chuva, então preparamos uma cama no sofá para o Nereu dormir. Ele percebeu o quanto estávamos nervosos e o convencemos de ficar. Na manhã seguinte, ele saiu cedo para ver os estragos da tormenta pela cidade.    

A força do vento foi devastadora, a cidade amanheceu com casas destelhadas e árvores caídas. No meio da praça encontraram um telhado inteiro de uma casa. As notícias que vinham da fazenda era de muito estrago. Muitos eucaliptos antigos e imensos se foram ao chão na avenida em frente à entrada da fazenda. A estrada foi obstruída, tiveram de cortar muitas árvores e arrastá-las para liberar a passagem de carros e ônibus.

Encontraram ovelhas mortas embaixo dos troncos. Os homens saíram recorrendo animais na inundação da várzea, as partes baixas do campo eram cheias de água. Depois que parou o vento, a chuva veio volumosa, havia enchente em várias partes do campo. 

A tormenta trouxe a enchente de Santa Rosa, vento norte quente, muito calor e temporais. Levaram dias para limpar a cidade. Na fazenda morreram muitos bichos, galhos e troncos de eucaliptos foram sendo amontoados ao longo da avenida. Aquelas árvores imensas não resistiram à fúria do tempo. Logo, vieram dias calmos, dias de bonança, dias de recomeçar.    

sábado, 29 de outubro de 2022

Otacílio

Há muitas vantagens em se viver em uma cidade pequena. As distâncias são apenas pontos de vistas do que é longe e do que é perto, facilmente se atravessa a cidade com uma boa caminhada. As lonjuras, neste caso, são entre a cidade e as moradas localizadas no interior, no campo. Nestes pequenos municípios a vida tem outro ritmo, os vizinhos te socorrem, te auxiliam e te cuidam. Todo acontecimento inusitado se espalha logo como grande notícia. Metade das pessoas se encontram em festas familiares, porque casamentos acontecem ao longo de gerações entre famílias conhecidas, às vezes, primas casam com primos. E há, claro, as fofoqueiras de plantão, como de costume, espiando nas frestas das janelas ou disfarçadas por trás das cortinas das suas casas, quando não fofocam ali mesmo, no meio da praça em encontros furtivos. Espiam do alto das janelas os jovens retornando dos bailes do Clube Vicentino durante a madrugada.

Lili cruzava a cidade para provar as roupas na costureira. Gostava de olhar os modelos das revistas Manequim e Figurino, inspirava-se para desenhar seus próprios modelos. Desenhar era uma distração a que me dedicava durante à tarde, além de ler e estudar. Meus cadernos eram repletos de desenhos, minha preferência recaia sobre o desenho de pessoas. Minha mãe dizia que eu tinha mania de fazer desenhos de rostos, em especial, de mulheres. Não sei bem o que ela queria dizer nem o que exatamente pensava sobre minha obsessão.

De tempos em tempos, Lili rumava para lado oeste da cidade, para bem depois do cemitério. Levava tecidos, linhas e botões para dona Ursulina confeccionar as roupas planejadas nos esboços feitos em folhas arrancadas do caderno de desenho. A casa ficava para os lados da cooperativa,  junto ao bolicho do seu marido, seu Athos. Eu a conhecia por ser sogra de uma das minhas tantas tias, a Lena. A sala da casa tinha móveis escuros, paredes rosadas e uma porção de pássaros azuis de porcelana presos na parede e que me encantavam. Em um quarto junto ao espaço onde ela costurava, havia o dormitório de uma senhora muito idosa, quase centenária, tia do seu marido. Dona Ursulina dava corda para minhas invenções de estilista, fazia sugestões e ajustava a costura na prova. Na volta para casa, eu levava alguma costura pronta da minha mãe.

No bolicho, eu sempre pegava uma rapadura. Meu pai nos acostumou com as rapaduras de caldo de cana que comprava em Jaguari, pegamos muito gosto por elas. O balcão para atender os clientes era alto e atravessava toda a peça, dividindo as prateleiras das mercadorias de quem chegava para comprar, sobre ele uma balança com pesos de metal.  Comercializavam grãos à granel, depositados em tulhas e descascavam arroz para vender por quilo, além de enlatados, temperos, refrigerantes e cachaça. Encostados nas portas ou sentados em cadeiras de palha, os borrachos de sempre. Eu conhecia de longe o tio Vito, irmão do meu avô, com seus olhos azuis profundos, era  freguês habitual do bolicho. Mas havia outra figura que rondava o estabelecimento, para beber um trago oferecido pelos borrachos habituais. Ele também recolhia sobras e ganhava algo para comer. Andava pela cidade, atravessava distâncias com seu jeito de desnorteado: o Otacílio

O Otacílio vestia-se de roupas velhas, sempre desbotadas e gastas. Em volta da cabeça uma faixa clara já amarelada de sujeira e gordura. Amarrava as calças na cintura com um cordão. Lili o conhecia porque passava por ele na volta da escola. O almoço, ele tinha garantido pela dona Amélia, que morava na esquina, no lado oposto da farmácia da tia Ivoly. Ali ele esperava junto ao portão lateral pelo seu prato de comida, todo santo dia. Falava pouco, parecia constantemente perturbado, não gostava de provocações. Cada vez que alguém dizia algo a ele ou ria, saia esbravejando. Otacílio era meu relógio, eu calculava a hora que estava chegando em casa pela presença dele sentado na calçada na sombra das ameixeiras da casa à espera de um prato de comida. Dona Amélia não falhava no seu cuidado e ele parecia demonstrar um grande respeito por aquela senhora miúda, de cabelos brancos e um coque no altura do pescoço, que lhe oferecia o almoço diariamente.

Na cidade pequena as pessoas vão se encontrando nas poucas ruas que existem. Se cruzam no cemitério, na única agência bancária, na frente dos correios ou em algum mercadinho mais afastado, onde tem a farinha de milho mais saborosa ou onde tem o feijão que cozinha muito bem, como o do seu Augusto. A gente sabia que ele comprava feijão na Mata para revender e encomendava uns quilos. No meio do caminho, invariavelmente, dona Bibiana me parava na calçada e me segurava pelo braço, queria notícias da família. Ela me chamava carinhosamente de parentinha. De fato, eles tinham algum parentesco com minha mãe. Há uma corrente de afetos, de conversas, de encontros cotidianos que tornava a cidade de Lili um lugar de pequenas grandes histórias de vida. 



Carapé

O senso de localização de quem vive em uma cidade pequena segue indicações personalizadas, as zonas urbanas não são identificadas pelos pont...